Pular para o conteúdo principal

Postagens

Verão macabro

Após ouvir atentamente os instigantes comentários da Neca, minha mulher, empolgada com a vida incomum da escritora inglesa Mary Shelley, fui assistir a um documentário da BBC sobre a criação do romance Frankenstein, obra urdida sobre sonhos perturbadores da autora e instigada a partir de uma brincadeira entre amigos, não menos excêntricos, no verão de 1816. O livro foi publicado pela primeira vez no ano de 1818 com o título Frankenstein: or the Modern Prometheus, anonimamente. Não era fácil para uma mulher jovem, apenas 21 anos, assinar um enredo tão mórbido e inquietante, no início do século XIX. Mas Mary Shelley não era apenas uma jovem de talento brilhante e atormentada por visões monstruosas da ciência em sua obsessão datada por desvendar os segredos da morte e de promover a restauração da vida em corpos inertes. Mary era filha de intelectuais famosos e muito adiantados para o pensamento da sua geração, o filósofo e novelista William Godwin e a pedagoga Mary Wollstonecraf...

Incompreendidos

Entre os profissionais mais incompreendidos do mercado está o publicitário. A começar pela múltipla possibilidade de funções associadas à sua atividade. Publicitário pode ser um estrategista de comunicação, um artista da imagem, um escritor a serviço da marca, um especialista em mídias, um grande negociador de verbas e de compras de audiência, um produtor de peças gráficas ou eletrônicas, incluindo um contêiner de outras coisas em meios off-line e on-line. Alguém já viu greve de publicitário? Começa por aí, é uma profissão sem rede de segurança. Ao primeiro sinal de adversidade financeira cortam-se as verbas publicitárias. No cliente as mazelas se multiplicam. Quando convém o publicitário é visto como sendo um artista. Perigo na área! Artista nestes casos é eufemismo para excêntrico, louco e viajandão. Quando todos se rendem à qualidade do trabalho o mérito é do cliente que se fez entender, ou do pessoal do marketing que finalmente tem uma expressão adequada ao s...

A neta

Conheci a neta de Lampião, conversei com ela cerca de uma hora no lançamento do seu livro De Virgolino a Lampião, escrito em parceria com o pesquisador do cangaço Antônio Amaury, no Mercado Público de Porto Alegre, no já distante ano de 2000. Cheguei com minha mulher no meio da tarde, em dia de semana, pois havia uma exposição paralela sobre Lampião, Maria Bonita, contendo relíquias do cangaço. A Vera saiu da área de autógrafos e se aproximou da gente, porque ouviu a Neca me chamando a atenção para a beleza brejeira de Maria Bonita. Disse um oi sorridente e falou que era neta da moça. No início ficamos meio sem jeito, mas em seguida a conversa prosperou como se fôssemos velhos vizinhos que se reencontram e começam a lembrar da parentada. - E dona Expedita tua mãe, ela lembra dos pais? - Tem uns retalhos de lembranças mas era pequena e ficava muito tempo longe deles, tempo demais pra se criar memória. Vera nos falou de coisas muito peculiares sobre as pessoas do cangaç...

Irreverência

A irreverência é uma virtude perigosa, mas quando esclarecida é divina. Outro dia lendo uma das tantas referências interessantes feitas sobre a vida de Napoleão Bonaparte, deparei com uma passagem emblemática. O cadete Bonaparte cometeu uma indisciplina qualquer e seu monitor colocou o futuro conquistador militar da Europa no castigo, mal sabia ele o risco da sua coragem. A ordem era ajoelhar sobre grãos de milho junto ao canto da parede da sala de aula. Napoleão olhou o monitor dentro das pupilas e disse com voz baixa e segura: - O senhor me dê outro castigo que o farei de bom grado, mas jamais me diga para ajoelhar seja pelo que for, porque da casa de onde eu venho as pessoas somente se ajoelham diante de Deus. Tem uma passagem da Leila Diniz que é melhor ainda. Um coronel atuante nos órgãos repressivos do governo militar brasileiro, era tarado pela Leila. Certo dia mandou entregar tantas flores e bombons no camarim da atriz, que ocupou todos os espaços e atiçou o fa...

Frio seco

Há uma alegria contida em cada massa de ar polar que a meteorologia anuncia. O frio seco é alma gêmea da luz difusa, juntos eles afastam a paisagem e ampliam o espaço interno da alma. O silêncio das noites frias só perde em magia para o assovio nostálgico do minuano que vem junto com as frentes mais severas. Tudo é belo e áspero, brut . O prazer de cozinhar no fogão a lenha, enquanto se bebe sem pressa no calor do lar, nosso cantinho mais particular neste vasto mundo. E o frio lá fora. A tevê a cabo, os filmes pra ver, os livros pra ler e um pouco de namoro, com aquele beijo mais demorado de sabor macio, pinot noir . Até os gatos ficam mais soberanos no frio, meu cão pastor ganha seu salvo-conduto para entrar no ambiente fechado e deita-se próximo como um lobo protetor. O frio nos faz uma nação diferente dentro do país. Sem levar em conta a história do extremo sul, uma saga de muitas idas e vindas, o clima se encarrega, por si mesmo, de nos fazer gaúchos. Nem é pr...

Ainda escrever

O Giuliano leu meu post Escrever. Fato em si mesmo admirável, uma vez que o Giu raramente lê minhas postagens. Ele costuma dizer que somente lê aqueles conteúdos que lhe possam ser úteis. Desta vez abriu uma exceção. Não apenas leu como também veio comentar comigo. Passamos a debater o post a partir do quanto possuir o dom natural é, ou não, imprescindível na construção de um verdadeiro mestre da literatura. Lá pelas tantas, enquanto eu fazia a defesa de outro componente indispensável para elaborar o caldo de um escritor diferenciado - a paixão pelo metier – notei que o meu amigo ainda buscava determinar a real importância do talento natural. Aí me dei conta que o Giu confundira o sentido da palavra inata , fato corriqueiro, utilizada na minha frase de abertura do post: “a arte de escrever bem é inata”. Meu amigo mineiro entendeu às avessas, ou seja, que a arte de escrever bem não é um atributo natural. Inata é uma palavra que confunde as pessoas. Feito o esclarec...

Escrever

A arte de escrever bem é inata. Habilidade que se faz presente em quase todas as atividades, o texto é valorizado. Quem escreve bem flui naturalmente e, lá pelas tantas, dribla o contexto sem perder o norte da sua fala. Ao contrário, enriquece e valoriza o assunto. Redatores publicitários, por exemplo, são especialistas em dribles curtos, passes precisos e poucos chutes, de preferência certeiros. Os jornalistas também. Sempre gostei de escrever, descrever, contar uma história, provocar conversa e driblar a atenção dos meus interlocutores. É divertido. Mas a categoria de escritores que pretendo referir é outra. Os mestres. Um escritor de raiz é um prestidigitador da palavra, capaz de transformar bula de remédio em literatura russa. Não existe o maior dos escritores, os mestres são incomparáveis. Mas existem as preferências, e eu coloco Shakespeare entre os dez mais. Expressou com energia e sarcasmo a essência social da raça humana de uma forma quase contemporân...