Pular para o conteúdo principal

Frio seco


Há uma alegria contida em cada massa de ar polar que a meteorologia anuncia.
O frio seco é alma gêmea da luz difusa, juntos eles afastam a paisagem e ampliam o espaço interno da alma.
O silêncio das noites frias só perde em magia para o assovio nostálgico do minuano que vem junto com as frentes mais severas.
Tudo é belo e áspero, brut.

O prazer de cozinhar no fogão a lenha, enquanto se bebe sem pressa no calor do lar, nosso cantinho mais particular neste vasto mundo. E o frio lá fora.
A tevê a cabo, os filmes pra ver, os livros pra ler e um pouco de namoro, com aquele beijo mais demorado de sabor macio, pinot noir.
Até os gatos ficam mais soberanos no frio, meu cão pastor ganha seu salvo-conduto para entrar no ambiente fechado e deita-se próximo como um lobo protetor.

O frio nos faz uma nação diferente dentro do país.
Sem levar em conta a história do extremo sul, uma saga de muitas idas e vindas, o clima se encarrega, por si mesmo, de nos fazer gaúchos.
Nem é preciso viver no pampa, no planalto ou nos campos de cima da serra, nem ter um cavalo para percorrer longos caminhos, basta o frio e um fogão a lenha para dar cor ao nosso pago interior.
É um mix de índoles fortes que combina com a aspereza do frio seco, exilados portugueses, alemães, italianos e índios, os que aqui já viviam e lutavam por seu território, enfrentando a geada, a neve, a ventania, as chuvaradas, as secas e os invasores de todos os naipes.
Ganhamos até um toque castelhano que, por tanto enfrentamento e charla, acabamos misturando em nosso revirado de costumes e sotaques.

O frio seco me renova.
Doem as juntas, racham os lábios, congelam as mãos, mas meu coração se acende como um fogo de graveto caprichado.
Agora é comprar lenha boa e seca, pinhão graúdo, charque de primeira, fazer pão em casa, assar um vazio de vez em quando e esperar pela saudade dos amigos.
Bom inverno a todos.

Comentários

Anônimo disse…
Somos parte desse aconchego do inverno do Ju (eu, Fidélis,Juno e Panzer). O frio nos aproxima. Ao mesmo tempo que congela nossos músculos , esquenta nossos corações. Em nossa casa nova de extremos de 40 - 0 graus) vamos curtindo nossa vida.
false disse…
Juarez!!

Eu e Charles estamos com saudades de você!! Continuas escrevendo lindamente como sempre! bjs

natália
Anônimo disse…
Natália!!!
Nossa, que satisfação te ver dando sinal de vida. Como estão vocês? Meu grande companheiro Charles continua em sua militância ideológica? Quero reencontrar vocês, pessoas que prezo demais e me trazem memórias ótimas.
Aquele abraço a este casal nota dez.
Voltaremos.

Postagens mais visitadas deste blog

Chamem David!

Afora ser um dos maiores talentos da pintura francesa de todos os tempos, Jacques Louis David foi sem dúvida o de maior presença nos eventos que mexeram com a vida dos franceses entre a Revolução Francesa e o Império de Napoleão Bonaparte. Um talento que sobreviveu ao seu tempo, mas sob um crivo mais severo: um artista chapa branca. Capaz de aderir a qualquer governo ou ideologia. David retratou as batalhas e símbolos dos anos de afirmação da Revolução Francesa, tão importante que quando alguma coisa espetacular estava por acontecer e merecia um registro pictórico, alguém do núcleo de Robespierre bradava: “chamem David!”. Retratou a morte de Jean Marat de forma esplêndida e, de um jeito que só ele sabia fazer, escapou da guilhotina quando seu protetor Robespierre foi condenado. Caiu nas graças de Napoleão e virou o pintor oficial do novo imperador. Seguiu sendo o pintor oficial da França até que Luís XVIII, irmão do decapitado Luís XVI, assumiu o comando da nação após o e

Em busca do vazio

A virada do século 19 para o século 20 foi um período de invejável criação literária, enquanto a ciência e a indústria viviam eufóricos dias de glória e extravagâncias. As festas boêmias eram regadas com absinto destilado, também utilizado pela medicina neste período, mas entre os boêmios aristocratas, os escritores e artistas, o absinto ganhou contornos de droga da moda, sendo largamente consumido nas grandes cidades européias como Londres, Viena, Praga e, intensamente, na Paris da Belle Époque. Não por acaso, seus usuários passaram a denominá-lo de “a fada verde”, devido ao seu mágico poder de ampliar as portas da percepção. Bem verdade que essa galera agregava ao absinto um parceiro poderoso, o láudano extraído da papoula. Recentemente tive a oportunidade de degustar uma dose de absinto. Absinto produzido em Praga, que meus amigos Fábio e Márcia trouxeram na bagagem de retorno da sua viagem por cidades do antigo Império Austro-Húngaro, em 2011. Reservaram a garrafa pa

República do Marais

Passei minha vida administrando muito pouco dinheiro, quando não à beira da mais pura dureza, portanto nunca projetei muitas viagens que não fossem terrestres. Conheço pessoas que amam viajar, quanto mais melhor, e para lugares bem diversos dentro do país ou ao redor do planeta. São descolados, aventureiros e até esportistas, gente que habita aeroportos e hotéis nos quatro cantos do mundo. Muitos viajam por razões profissionais, de forma mais ou menos frequente, enfim é um povo acostumado às viagens, aos diversos climas e fuso-horários. No meu caso, toda viagem é uma tortura que inicia à medida que sua data aproxima. Sou entocado, gosto de ficar em casa e sair de automóvel por perto para voltar logo.  Detesto voar. Sem falar nas esperas em aeroportos. Mas se o destino for Paris, gasto meu último tostão e suporto tudo com resignação. Nos últimos cinco anos, por 17 dias anuais, o bairro do Marais é meu lar em Paris. Isto é simplesmente mágico, o velho casario da Rue Charlot,