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Mostrando postagens de setembro, 2012

Geração violada

O ano era 1977. Envergando o uniforme de passeio de praças da Aeronáutica, no esplendor dos meus vinte anos eu curtia exibir minha primeira divisa recém conquistada, afinal eu podia me apresentar como um soldado de primeira classe da Força Aérea Brasileira. Havia embarcado no ônibus em Canela e seguia para o quartel após um fim de semana sem escala de serviço. Aquela manhã de segunda estava gelada e coberta por densa neblina, nas poucas poltronas ocupadas as pessoas já dormiam antes mesmo da primeira parada prevista em nossa breve viagem. Quando a porta se abriu para receber os passageiros que embarcavam em Gramado, eis que emergiu a figura de uma mulher madura, bonita e vestida com uma casualidade altiva. Mirou seu olhar em meus olhos e me pediu licença para ocupar a poltrona vaga com um sutil acento germânico sem prejuízo do seu português correto. Após me analisar com alguma discrição a coroa puxou assunto. Devia ter uns cinquenta anos pensei, era bonita, mas muito velh

Mordendo a língua

Estranho este negócio de auto-imagem. Na minha juventude obcecada por esportes e atividades físicas eu era dono de um corpo privilegiado em músculos e proporções, as fotos antigas documentam o fato. Paradoxalmente eu me sentia totalmente inseguro com minha aparência, tanto que esta fase de praticamente vinte anos, iniciada na adolescência, determinou toda a canalização da minha personalidade para o tipo de adulto maduro que me tornei. Não fiquei melhor nem pior por conta desta visão negativa da minha aparência. Certamente aprendi a ser mais cínico e menos convencional nas ideias. Pois bem, com o tempo fui perdendo o entusiasmo por malhar demais, mas conservei o meu infinito apetite por comer bem. Bem ao meu modo, é claro. Sempre fui um minimalista do consumo culinário e adoro repetir com freqüência o consumo das coisas que gosto. Criado na serra gaúcha, aprendi cedo a gostar de carnes, massas, comidas caseiras e gaúchas, pão de milho, rosca de polvilho, embutidos, pinh

Olá Primavera

Vejo você em toda parte. Colorida e extrovertida, você chegou. No lugar onde eu moro tudo evidencia a tua chegada e os jardins ganham novas flores a cada fim de semana, os ipês estão floridos e a Neca tem feito compras regulares na floricultura mais gigantesca da nossa parte da cidade. Está orgulhosa das suas folhagens, temperos e flores. Analisa com extrema atenção os jardins vizinhos e seus quintais, aqueles pequenos pátios que podem ser vistos da janela dos fundos do nosso piso superior. E satisfeita conclui: “nossa casa é a mais bonita”. As formigas apareceram para desafiar sua persistência de jardineira dedicada. Até agora é uma guerra com algumas baixas para as plantinhas, mas com elevadas perdas de vidas para o inimigo invasor. Com tua chegada, amiga Primavera, a gente retomou as caminhadas com o Panzer até a beira do Guaíba e, às vezes, até o campinho inferior do Morro do Osso, reserva natural que fica perto do nosso condomínio. Pois é dona Primavera, você

O dia em que a Terra parou

Há exatos onze anos (incríveis onze anos se passaram), o Planeta inteiro parou para assistir ao vivo a destruição do World Trade Center. Nunca estive de verdade em New York, mas ela me visitou centenas de vezes nos filmes e acontecimentos que forjaram os valores, sonhos e desilusões da minha geração. É como se eu percorresse inúmeras vezes as escadarias da Grand Station, subisse até não ver mais graça no mirante do Empire State, visse todo ano a colocação da Árvore de Natal no Rockfeller Center, andasse distraído nas calçadas da 5ª Avenida e conhecesse a Times Square desde a construção do Ferro de Passar. Cruzei a Ponte do Brooklin em épocas diferentes sem nunca deixar de admirar sua arquitetura e a ousadia dos cabos de aço que a sustentam. Estive no Madison Square Garden quando Muhammad Ali perdeu para Joe Frazier, em 1971, onde aprendi que os melhores são maiores que as suas próprias derrotas e, também, aprendi a ser um novaiorquino comum nos filmes do Woody Allen. Eu e

Em busca do vazio

A virada do século 19 para o século 20 foi um período de invejável criação literária, enquanto a ciência e a indústria viviam eufóricos dias de glória e extravagâncias. As festas boêmias eram regadas com absinto destilado, também utilizado pela medicina neste período, mas entre os boêmios aristocratas, os escritores e artistas, o absinto ganhou contornos de droga da moda, sendo largamente consumido nas grandes cidades européias como Londres, Viena, Praga e, intensamente, na Paris da Belle Époque. Não por acaso, seus usuários passaram a denominá-lo de “a fada verde”, devido ao seu mágico poder de ampliar as portas da percepção. Bem verdade que essa galera agregava ao absinto um parceiro poderoso, o láudano extraído da papoula. Recentemente tive a oportunidade de degustar uma dose de absinto. Absinto produzido em Praga, que meus amigos Fábio e Márcia trouxeram na bagagem de retorno da sua viagem por cidades do antigo Império Austro-Húngaro, em 2011. Reservaram a garrafa pa