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Em busca do vazio


A virada do século 19 para o século 20 foi um período de invejável criação literária, enquanto a ciência e a indústria viviam eufóricos dias de glória e extravagâncias.

As festas boêmias eram regadas com absinto destilado, também utilizado pela medicina neste período, mas entre os boêmios aristocratas, os escritores e artistas, o absinto ganhou contornos de droga da moda, sendo largamente consumido nas grandes cidades européias como Londres, Viena, Praga e, intensamente, na Paris da Belle Époque.
Não por acaso, seus usuários passaram a denominá-lo de “a fada verde”, devido ao seu mágico poder de ampliar as portas da percepção. Bem verdade que essa galera agregava ao absinto um parceiro poderoso, o láudano extraído da papoula.

Recentemente tive a oportunidade de degustar uma dose de absinto.
Absinto produzido em Praga, que meus amigos Fábio e Márcia trouxeram na bagagem de retorno da sua viagem por cidades do antigo Império Austro-Húngaro, em 2011.
Reservaram a garrafa para romper seu lacre em um algum momento especial com seus amigos. O que acabou sendo uma carinhosa confraternização e uma honraria.
Fomos todos bem parcimoniosos no consumo da “fada verde”. Minha língua porém, revelou de imediato o poder analgésico do verde azulado e, em questão de minutos, a conversa rolava solta e embalada pelo riso fácil dos comensais.

O assunto descambou para a filosofia existencial e para sugestões individuais sobre um possível futuro melhor para a comunidade humana. O absinto deve ter alguma conexão budista na sua fórmula, pois navegamos em projeções sobre quanto o desapego da materialidade facilita um projeto de civilização pacífica e harmoniosa.
Claro que ninguém perdeu contato com seu próprio cinismo e racionalidade, mas é boa a ideia de desacelerar o ritmo, minimalizar a vida e curtir tudo com simplicidade.

Então?
Quem sabe o absinto nos motivasse a criação de um movimento livre, sem estatutos, para promover a simplificação da vida, onde o prazer fosse livre da ganância.
Sugeri um nome para a nossa escola filosófica: Em Busca do Vazio.

Risos. “Bem coisa de publicitário”, disse a Márcia.
O vazio como o ponto de contato entre a mente e o ser, o distanciamento do mundo exterior e o mergulho nas águas profundas e misteriosas do id.
A vida sonhada pelos hippies, apenas menos doidona. Banhos de rio, as tardes longas e preguiçosas, noites ao redor do fogo e bons livros, bem ao lado da cama.
Trabalhar o necessário para sobreviver em um lugar simples e confortável.

Ah! E o tão desejado vazio.
Segundo meus cálculos, uns três quilos de vazio para três casais e duas crianças, carvão de acácia negra e dá-lhe churrasco nas noites de sábado. Absinto, cachaça e ceva.
Afinal, em nosso movimento ninguém precisa ser vegetariano.
Nem abstêmio.

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