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Mordendo a língua


Estranho este negócio de auto-imagem.
Na minha juventude obcecada por esportes e atividades físicas eu era dono de um corpo privilegiado em músculos e proporções, as fotos antigas documentam o fato.
Paradoxalmente eu me sentia totalmente inseguro com minha aparência, tanto que esta fase de praticamente vinte anos, iniciada na adolescência, determinou toda a canalização da minha personalidade para o tipo de adulto maduro que me tornei.
Não fiquei melhor nem pior por conta desta visão negativa da minha aparência.
Certamente aprendi a ser mais cínico e menos convencional nas ideias.

Pois bem, com o tempo fui perdendo o entusiasmo por malhar demais, mas conservei o meu infinito apetite por comer bem.
Bem ao meu modo, é claro. Sempre fui um minimalista do consumo culinário e adoro repetir com freqüência o consumo das coisas que gosto. Criado na serra gaúcha, aprendi cedo a gostar de carnes, massas, comidas caseiras e gaúchas, pão de milho, rosca de polvilho, embutidos, pinhão, leite e ovos.
Seletivo em meu gosto, nunca fui apreciador dos frutos do mar à exceção de um peixe frito sem espinhas e um camarão graúdo à milanesa.

Até hoje, o meu prato favorito é bife de coxão de dentro com uma bordinha de gordura feito na chapa do fogão ou na panela de ferro, acompanhado de arroz soltinho e uns três ovos fritos com a gema mole para misturar com o arroz e o caldo do bife. Não é a toa que ganhei uma barriga respeitável e me instalei na faixa dos cem quilos.
Ironicamente sou muito mais seguro agora do que antes, até porque eu sei que estou fora dos padrões recomendados pela OMS e pela Glória Khalil.
Só não gosto de ser chamado de gordo e ou de barrigudo pela Neca, que é meu último voto de respeito à opinião alheia neste quesito da aparência.

Sou, portanto, um gordinho construído com o esforço de muitos carreteiros.

Desprezei as pizzas minha vida inteira, embora fazendo o sacrifício de acompanhar as pessoas de quem gosto em muitas ocasiões no consumo deste verdadeiro ícone nacional. Mas nunca vi graça em comer pizza.
Um domingo desses, eu e a Neca, fomos visitar nossa amiga Lu Hoppe, sua linda filha Gabriela e o maridão Eduardo, um gourmet de mão cheia e mil receitas. E lá se atracou o Eduardo no preparo da própria massa para nos servir pizzas assadas no forno, que ele próprio construiu em sua casa nova.
Preparei-me para comer e elogiar as pizzas do Dudu, mesmo prevendo a minha decepção de sempre com este cardápio.


Mordi a língua, não literalmente, mas de fato fui surpreendido.
Acho que comi umas dez fatias de sabores diferentes, cada uma melhor que a outra. Gostei de tudo, da massa crocante, dos condimentos e suas combinações, da leveza e seu mágico apelo de "quero mais”.

Vivi neste dia uma verdadeira conversão gastronômica que vai ampliar meu cardápio e pouco servirá para me devolver aos desejáveis noventa e poucos quilos.

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