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Verão macabro


Após ouvir atentamente os instigantes comentários da Neca, minha mulher, empolgada com a vida incomum da escritora inglesa Mary Shelley, fui assistir a um documentário da BBC sobre a criação do romance Frankenstein, obra urdida sobre sonhos perturbadores da autora e instigada a partir de uma brincadeira entre amigos, não menos excêntricos, no verão de 1816.
O livro foi publicado pela primeira vez no ano de 1818 com o título Frankenstein: or the Modern Prometheus, anonimamente. Não era fácil para uma mulher jovem, apenas 21 anos, assinar um enredo tão mórbido e inquietante, no início do século XIX.

Mas Mary Shelley não era apenas uma jovem de talento brilhante e atormentada por visões monstruosas da ciência em sua obsessão datada por desvendar os segredos da morte e de promover a restauração da vida em corpos inertes.
Mary era filha de intelectuais famosos e muito adiantados para o pensamento da sua geração, o filósofo e novelista William Godwin e a pedagoga Mary Wollstonecraft, precursora do futuro movimento feminista.
O pai era um mestre respeitado que influenciou uma geração inteira de escritores e pensadores de uma Inglaterra ainda aturdida pelos ventos da Revolução Francesa.
A mãe que já havia viajado sozinha pelo mundo e teve uma filha ainda solteira, defendia ideias como o amor livre e a emancipação total das mulheres.
Isto revela que Mary Shelley foi uma hippie um século e meio antes do movimento.

Mary cresceu protegida pelo amor do pai, marcada profundamente pela morte da mãe dias após o seu nascimento e emocionalmente distante da madrasta.
Foi incentivada a ler tudo pelo que tivesse interesse e a manifestar suas opiniões com liberdade. Certo dia conheceu Percy Shelley, jovem discípulo e protegido do seu pai.
Apaixonados eles fugiram para a Europa junto com a irmã mais jovem de Mary, filha do segundo casamento do pai, formando um triângulo amoroso pouco ortodoxo.

Na Suíça acabaram se encontrando com Lord Byron, um jovem sedutor, celebridade literária de origem nobre e com seu amigo, o médico escritor, John Polidori.
Passaram alguns dias em Villa Diodati, famosa mansão às margens do Lago Genebra.
Conta-se que Mary, a meia-irmã Claire, Percy, Byron e Polidori passaram esses dias utilizando ópio e láudano, vivendo relações sensuais compartilhadas e, numa semana especialmente tenebrosa com temporais intermitentes, liam contos macabros.
Lord Byron propôs a cada um o desafio de escrever uma história de terror para depois apresentar seu conto aos amigos.

Desse verão de 1816, do qual se dizia na época “ter sido o verão que não aconteceu”, pois choveu e fez frio em quase todos os dias, nasceram Lord Ruthven, que inspiraria  Bram Stoker a criar seu Conde Drácula anos depois, e Frankenstein.
O vampiro sedutor foi criado por John Polidori, ao que tudo indica inspirado no amigo Byron, um devorador de mulheres casadas com seu estilo frio e bissexual.
Mas a personalidade mais sombria, capaz de remexer profundamente com a morbidez da solidão e da miséria emocional humana, foi sem dúvida, Frankenstein.
A criatura de Shelley, rejeitada pelo seu criador, sobrevive realizando vinganças cruéis por conta do seu abandono. E no sugestivo final, desaparece na escuridão infinita.

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