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Lucidez na partida

A morte do ator Walmor Chagas em sua casa de campo, sentado na cozinha com o revólver no colo depois de atirar contra a própria cabeça, me faz retornar àquela sempre áspera questão: quanto vale o seguir vivendo a partir de certos limites? Em outubro de 2011, Walmor foi o primeiro entrevistado da jornalista Bianca Ramoneda, do programa Starte, para a série Grandes Atores, como parte das matérias especiais preparadas para comemorar em alto estilo os 15 anos do canal de notícias Globo News. Quem rever a entrevista vai sentir arrepios ao ouvir o ator revelar que “ama tanto a vida que chega a desejar a morte”, fazendo referência a um poema de Carlos Drummond de Andrade. Walmor praticamente antecipou o seu bilhete de despedida quando disse que a morte não o assusta, ao contrário, ele a deseja. “A morte é a libertação do vale de lágrimas que é a vida por melhor que ela seja”. Medo ele tem da doença, da perda das funcionalidades essenciais como andar, comer e ir ao banheiro sozinho...

Razão e sensibilidade

A tal da empatia é aquela capacidade de sentir e compreender a experiência da outra pessoa pelo ponto de vista dela. Diria que é irmã da intuição e, ambas, filhas da sensibilidade. Ao longo da história humana, essas forças hereges sofreram severas restrições de parte da sua grande e bem sucedida avó, a magnificente senhora razão. Desde os mais remotos tempos até os dias de hoje, a razão tem sido o farol primordial na condução do desenvolvimento do homo sapiens, mas, e é aí que o tempero dá liga, nos melhores momentos da civilização e dos indivíduos em particular, a razão agiu em íntima colaboração com a sensibilidade.  E nos mais preciosos deles, reunidas às jovens intuição e empatia. A cena europeia dos ‘bem nascidos’ de Paris, Londres, Viena e São Petersburgo lá pelos últimos vinte e cinco anos do século dezenove foi a própria decadence avec elegance , porque não faltaram tramas alucinantes em busca de poder e privilégios nem de sofisticados jogos amorosos entre o...

Idade média

Comparo a juventude da minha geração, cinquentões e cinquentinhas, a uma espécie de Idade Média Contemporânea, especialmente entre os de origem mais ‘pelada’ por assim dizer. Morei por um bom tempo em casa sem energia elétrica e sanitário separado da residência, chamávamos patente, um termo estranho para a finalidade do imóvel. Mais tarde acabou rebatizado mais adequadamente como casinha. Com o tempo chegou a luz, o rádio e, quando eu já estava com treze anos, assisti pela primeira vez televisão na minha própria casa. Estreei bem, Copa do Mundo de 1970, tevê marca Admiral e a antena cravada no pátio, no alto de um poste de eucalipto, onde seguidamente alguém tinha encostar a escada e mover a antena de recepção de um lado para o outro. O medievalismo vem daqueles hábitos toscos, mas sofisticados em sua proposta. Por exemplo, naquela época sempre havia um parente que aplicava as injeções de tratamentos médicos em toda família. Tínhamos a Rose e o tio Zeca. Era um status...

Dores nas costas

Minha região lombar está se transformando na Faixa de Gaza do meu corpo: um lugar de dores frequentes com alguns raros intervalos de conforto. Transferi para 2013 as devidas investigações médicas, mas adivinho que um misto de sobrepeso, idade avançando e o caminhar manco por conta de um joelho com antiga sequela, estejam no cerne da causa. Enquanto isto sigo, às vezes menos desenvolto, realizando todas minhas rotinas. Mas passei a observar mais atentamente o ministro Joaquim Barbosa em algumas das famosas sessões do chamado julgamento do mensalão. Além do que todos observam - Barbosa muda a postura corporal o tempo inteiro, um senta levanta com apoio explícito no espaldar da sua cadeira - notei faíscas de dor no olhar do atual presidente do STF, mesmo quando se esforça para manter aquela sua expressão de serenidade durante os trabalhos. Nos duelos travados com o seu colega revisor do processo, o ministro Barbosa testou em estágios extremos a sua resiliência sem perder o f...

Arduíno e Armindo

Tio Zeca era um sujeito de bom trânsito entre seus sobrinhos. Simples, prestativo e sempre disposto a fazer um jogo de canastra ou de escova, ele também era um bom contador de histórias, emotivo e às vezes turrão, mas divertido na maior parte do tempo. Entre as minhas histórias preferidas do Tio Zeca, estavam as narrativas que ele fazia sobre os irmãos Arduíno e Armindo, gêmeos semi autistas que cresceram ignorando quase que totalmente as realidades do mundo externo. Nunca soube se os gêmeos existiram de verdade, mas suspeito que sim. Embora alheios aos enredos da vida exterior, Arduíno e Armindo passavam horas a fio sentados, lado a lado, no alpendre da sua casa “observando o movimento”. Em determinadas ocasiões as pessoas se irritavam com os garotos, porque no meio de uma conversa séria, Arduíno e Armindo irrompiam em gargalhadas. Riam sem parar por vários minutos e quando se olhavam riam ainda mais, de rolar no chão entre lágrimas e o engasgo do riso convulsivo. ...

Paulo Coelho

O sucesso do escritor Paulo Coelho é um verdadeiro mistério. Não foi apenas aquele conhecido fenômeno de um ou dois livros que vendem febrilmente e depois ninguém mais ouve falar no autor. Por mais de quinze anos ele ocupou o topo das listas de livros mais vendidos, encantou gente do mundo inteiro e sempre tomou pau dos críticos literários brasileiros. E sempre sucesso. Lembro de uma foto do então presidente americano Bill Clinton com um exemplar em inglês do Alquimista, a França o condecorou com um cobiçado título por sua contribuição às artes e as moças instruídas do Irã faziam filas quilométricas para conquistar um autógrafo do escritor em suas visitas ao país. Bem verdade que por lá a sua imagem anda em baixa. Enfim, Paulo Coelho acabou virando um imortal da Academia Brasileira de Letras. Como esta suprema entidade literária do país já aceitou talentos duvidosos como José Sarney e preteriu poetas do quilate de Mário Quintana, este não chega a ser um título inatacável. ...

Geração violada

O ano era 1977. Envergando o uniforme de passeio de praças da Aeronáutica, no esplendor dos meus vinte anos eu curtia exibir minha primeira divisa recém conquistada, afinal eu podia me apresentar como um soldado de primeira classe da Força Aérea Brasileira. Havia embarcado no ônibus em Canela e seguia para o quartel após um fim de semana sem escala de serviço. Aquela manhã de segunda estava gelada e coberta por densa neblina, nas poucas poltronas ocupadas as pessoas já dormiam antes mesmo da primeira parada prevista em nossa breve viagem. Quando a porta se abriu para receber os passageiros que embarcavam em Gramado, eis que emergiu a figura de uma mulher madura, bonita e vestida com uma casualidade altiva. Mirou seu olhar em meus olhos e me pediu licença para ocupar a poltrona vaga com um sutil acento germânico sem prejuízo do seu português correto. Após me analisar com alguma discrição a coroa puxou assunto. Devia ter uns cinquenta anos pensei, era bonita, mas muito velh...