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Em frente

Seguir o fluxo da vida tem sido o destino natural da espécie humana. Tão natural como enfrentar as pestes, a fome, as guerras, os cataclismos e os atuais parâmetros de competitividade e de individualidade radical. Vivemos tempos de ansiedade, de grandes promessas e de poucas certezas. Tudo ao mesmo tempo agora. Somos pessoas digitais, instantâneas e descoladas. Ou jurássicas. Chegar à maturidade dos anos é ter que lidar com estas e outras transformações. Alguns se retiram da paisagem e buscam o doce ostracismo do lar, mas isto ainda é um luxo exclusivo dos previdentes financeiros, das mentes brilhantes e daqueles que receberam algum quinhão dos seus ascendentes, ainda com saúde para aproveitar. No mais a vida é uma planície onde todos disputam espaço e buscam sobreviver. Os mais velhos precisam necessariamente ser mais espertos para compensar a força e a velocidade que o tempo lhes vai consumindo paulatinamente. Mais do que isto, precisam superar um modelo d...

A vida como ela é

A escritora Pamela Druckerman é uma norte americana de meia-idade, charmosa em seu estilo contemporâneo e que, por conta do seu sucesso profissional, decidiu viver em Paris. Jornalista consagrada ela trabalhou para alguns dos ícones da imprensa mundial, entre eles o Wall Street Journal, Washington Post, New York Times e Marie Claire. Seus textos e pesquisas convergem para as venturas e desventuras da vida em família, a criação dos filhos e as questões que permeiam a infidelidade conjugal. Em seu livro Na Ponta da Língua , de 2009, que eu ainda não li, Pamela revelou como a infidelidade casual pode ser vista sob diferentes prismas, dependendo da cultura de cada país. Ela estudou cerca de 24 países com base na observação e entrevistas com pessoas casadas, obtendo um ranking da infidelidade. O Brasil ocupa uma discreta posição intermediária entre os países pesquisados. Sem entrar no mérito da confiabilidade de sua pesquisa, me parece que o melhor das análises de Druckerm...

Lucidez na partida

A morte do ator Walmor Chagas em sua casa de campo, sentado na cozinha com o revólver no colo depois de atirar contra a própria cabeça, me faz retornar àquela sempre áspera questão: quanto vale o seguir vivendo a partir de certos limites? Em outubro de 2011, Walmor foi o primeiro entrevistado da jornalista Bianca Ramoneda, do programa Starte, para a série Grandes Atores, como parte das matérias especiais preparadas para comemorar em alto estilo os 15 anos do canal de notícias Globo News. Quem rever a entrevista vai sentir arrepios ao ouvir o ator revelar que “ama tanto a vida que chega a desejar a morte”, fazendo referência a um poema de Carlos Drummond de Andrade. Walmor praticamente antecipou o seu bilhete de despedida quando disse que a morte não o assusta, ao contrário, ele a deseja. “A morte é a libertação do vale de lágrimas que é a vida por melhor que ela seja”. Medo ele tem da doença, da perda das funcionalidades essenciais como andar, comer e ir ao banheiro sozinho...

Razão e sensibilidade

A tal da empatia é aquela capacidade de sentir e compreender a experiência da outra pessoa pelo ponto de vista dela. Diria que é irmã da intuição e, ambas, filhas da sensibilidade. Ao longo da história humana, essas forças hereges sofreram severas restrições de parte da sua grande e bem sucedida avó, a magnificente senhora razão. Desde os mais remotos tempos até os dias de hoje, a razão tem sido o farol primordial na condução do desenvolvimento do homo sapiens, mas, e é aí que o tempero dá liga, nos melhores momentos da civilização e dos indivíduos em particular, a razão agiu em íntima colaboração com a sensibilidade.  E nos mais preciosos deles, reunidas às jovens intuição e empatia. A cena europeia dos ‘bem nascidos’ de Paris, Londres, Viena e São Petersburgo lá pelos últimos vinte e cinco anos do século dezenove foi a própria decadence avec elegance , porque não faltaram tramas alucinantes em busca de poder e privilégios nem de sofisticados jogos amorosos entre o...

Idade média

Comparo a juventude da minha geração, cinquentões e cinquentinhas, a uma espécie de Idade Média Contemporânea, especialmente entre os de origem mais ‘pelada’ por assim dizer. Morei por um bom tempo em casa sem energia elétrica e sanitário separado da residência, chamávamos patente, um termo estranho para a finalidade do imóvel. Mais tarde acabou rebatizado mais adequadamente como casinha. Com o tempo chegou a luz, o rádio e, quando eu já estava com treze anos, assisti pela primeira vez televisão na minha própria casa. Estreei bem, Copa do Mundo de 1970, tevê marca Admiral e a antena cravada no pátio, no alto de um poste de eucalipto, onde seguidamente alguém tinha encostar a escada e mover a antena de recepção de um lado para o outro. O medievalismo vem daqueles hábitos toscos, mas sofisticados em sua proposta. Por exemplo, naquela época sempre havia um parente que aplicava as injeções de tratamentos médicos em toda família. Tínhamos a Rose e o tio Zeca. Era um status...

Dores nas costas

Minha região lombar está se transformando na Faixa de Gaza do meu corpo: um lugar de dores frequentes com alguns raros intervalos de conforto. Transferi para 2013 as devidas investigações médicas, mas adivinho que um misto de sobrepeso, idade avançando e o caminhar manco por conta de um joelho com antiga sequela, estejam no cerne da causa. Enquanto isto sigo, às vezes menos desenvolto, realizando todas minhas rotinas. Mas passei a observar mais atentamente o ministro Joaquim Barbosa em algumas das famosas sessões do chamado julgamento do mensalão. Além do que todos observam - Barbosa muda a postura corporal o tempo inteiro, um senta levanta com apoio explícito no espaldar da sua cadeira - notei faíscas de dor no olhar do atual presidente do STF, mesmo quando se esforça para manter aquela sua expressão de serenidade durante os trabalhos. Nos duelos travados com o seu colega revisor do processo, o ministro Barbosa testou em estágios extremos a sua resiliência sem perder o f...

Arduíno e Armindo

Tio Zeca era um sujeito de bom trânsito entre seus sobrinhos. Simples, prestativo e sempre disposto a fazer um jogo de canastra ou de escova, ele também era um bom contador de histórias, emotivo e às vezes turrão, mas divertido na maior parte do tempo. Entre as minhas histórias preferidas do Tio Zeca, estavam as narrativas que ele fazia sobre os irmãos Arduíno e Armindo, gêmeos semi autistas que cresceram ignorando quase que totalmente as realidades do mundo externo. Nunca soube se os gêmeos existiram de verdade, mas suspeito que sim. Embora alheios aos enredos da vida exterior, Arduíno e Armindo passavam horas a fio sentados, lado a lado, no alpendre da sua casa “observando o movimento”. Em determinadas ocasiões as pessoas se irritavam com os garotos, porque no meio de uma conversa séria, Arduíno e Armindo irrompiam em gargalhadas. Riam sem parar por vários minutos e quando se olhavam riam ainda mais, de rolar no chão entre lágrimas e o engasgo do riso convulsivo. ...