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Discurso à Catrefa

Se me for solicitada a fala pública em algum futuro evento da Catrefa, refiro-me a mínima confraria de amigos fantásticos que a vida me proporcionou nas invernadas mais recentes deste meu meio século de existência, pedirei licença para ler o breve discurso que expresso a seguir. A Catrefa se provou um fenômeno raro nos dias atuais, marcados pelo culto ao individualismo e à competitividade. Na Catrefa estes aspectos não prosperam. Somos um grupo tão especial e distante das referências triviais de relacionamentos que me faz evocar a estrutura de convívio proposta no filme A Estranha Família de Antônia, produzido na Holanda e ganhador de um Oscar de Filme Estrangeiro. Assim como na película, a Catrefa acolhe o drama particular de cada integrante sem julgamento e com uma empatia digna de estudos mais avançados. O núcleo duro da Catrefa, menos de dez integrantes oficiais, já vivenciou a partida existencial da nossa querida madrinha, o luto do seu marido e filhos, a separação matrimonial da ...

As coisas que valem a pena

O ano de 2011 chega ao fim e penso sobre as coisas que, realmente, valem a pena. Este foi um ano de grandes transformações pessoais, quebra de paradigmas, sustos e também de muita revelação e amadurecimento. A vida é uma oportunidade mágica e incerta, afinal todos os dias se celebram nascimentos e se encomendam as almas de quem parte. Assim é, desde o começo dos tempos. Cada vez mais prefiro me ater ao que vale a pena, porque penso que a vida tem que ser saboreada a cada naco de segundo, afinal tudo se acabará um dia. Então o que realmente tem valor? Sem medo de errar, o maior bem é estar vivo, lúcido e capacitado a tocar o dia. A lista do que vem depois é generosa, desde um pão quentinho recém saído do forno até o aroma envolvente de um bom café sendo passado. Há uma infinidade de coisas prosaicas de grande valor. Passear de carro por estradas vazias, um banho de rio, um livro que prenda a gente, um trabalho bem realizado e por aí segue. O poeta e boêmio Vinícius de Moraes dizia que “...

Transformações

Há quem diga que o tempo está se escoando mais rápido. Os motivos desta aceleração já me foram explicados algumas vezes por amigos das ciências alternativas e, em todas, acabei por não entender nada. Mas compreendi que, se esta “teoria” for expressão de um fato e não de um delírio quântico, então nossas vidas estão se passando em alta velocidade. Seria razoável concluir que se ganhamos alguns anos a mais de expectativa de vida, em contrapartida eles estão mais curtos do que nos bons e velhos tempos. Desconfio que a percepção sobre a passagem do tempo começou a se alterar a partir do surgimento das grandes concentrações humanas e imprimiu sua velocidade com o surgimento do transporte aéreo. Mas o ponto de mutação deve ter ocorrido na fusão da internet rápida e as plataformas móveis, fontes instantâneas de comunicação sem fronteiras. Aqui e agora, sem limites de distância, com áudio e vídeo por um custo insignificante. Agora tudo se passa a mil. Só o trânsito é lento, a notícia é instant...

É bom estar aqui

Muito bom estar aqui digitando um poema sem pretensão. Quem bom o meu livro de hoje a noite. Meu cafezão com pão quentinho e cascudo. O documentário sobre os negros americanos e a sua música. A minha gata Juno descobrindo seus limites domésticos. E aquele cigarro com café preto no cantinho da varanda. Tudo para dizer que estou mais simples E que mais simples é um estado de ser... bem legal! Amanhã vai chover? Será que o frio vai voltar? Quando vou ter as condições de fazer aquela viagem? Será que terei que curar meu ronco antes de partir? Afinal o vôo é longo e a Neca vai morrer de vergonha. Será que uma cirurgia no nariz acaba com o problema? De qualquer forma preciso emagrecer. E o meu joelho? Por enquanto vou brincando de centroavante manco. Estou velho e gosto de estar velho e ativo. Sinto prazer em controlar a minha impulsividade. É um treino divertido, ficar mais quieto e menos ansioso. Meus planos são muitos, nem todos combinam. Melhor mesmo é o aqui e agora. É bom estar aqui. S...

O jogo

O que mais gosto no mundo do futebol é sua similaridade com a vida cotidiana. Assim como neste esporte, a vida é repleta de paixões e disputas que constroem ou destroem projetos pessoais, sonhos e reputações. Mesmo quando a vida anda difícil sempre existe a possibilidade dela piorar e ser rebaixada para divisões mais pobres e infernais do que aquela onde estamos. Assim também, por melhor que seja um momento de glórias ele tem um caráter efêmero, podendo ser virado do avesso após uma série de maus resultados. Tanto quanto no futebol, precisamos criar uma história para nos dar consistência. Um passado de conquistas pode nos alentar em fases de penúria e de fracassos, também nos impulsionando à reação para nos tornarmos dignos de melhores dias. Na vida somos o presidente, o treinador, o time e o jogador, ao mesmo tempo. Vivenciamos experiências semelhantes aos times de futebol, às vezes mostramos uma boa performance, mas falhamos na hora de fazer o gol. Diz a sabedoria das quat...

Fogão à lenha

De todas as poucas e singelas aquisições que pude fazer após a construção do chalé de madeira em que vivo com minha mulher, meus cães, gatos e minha sogra, nada me é tão precioso quanto o fogão à lenha. Objeto simples que passa dois terços do ano desativado, servindo de aparador, o fogão à lenha ressurge glorioso aos primeiros bafejos do ar polar, lá em meados do outono, e assim permanece resplandecente ao longo do inverno. Este ano a estação fria começou promissora, com uma honesta e duradoura massa de ar gelado, prometendo consolidar um inverno de inspiração russa. Perfeito para combinar com pinhão na chapa, comida na panela de ferro, vinho tinto seco e livros para o deleite das horas, apenas cuidando de manter o fogo e espiando pela varanda envidraçada o rigor climático do lado externo, que torna ainda mais aconchegante o cantinho quente e protegido do lar. De repente uma viração. Some o frio seco e ríspido dando lugar a uma verdadeira monção chinesa, chuva em bicas sem parar e uma ...

Os danos reais

Haja saúde mental para suportar tanta loucura produzida em série. Quanto mais leio ensaios literários que mergulham de forma arguta e embasada em quaisquer períodos históricos da humanidade, mais me convenço do flagelo que as pessoas comuns são submetidas diante dos experimentos criados pelos príncipes do poder econômico e os soberanos do comando político. Não existe rede de proteção para quem deseja viver de forma simples e construir uma trajetória existencial calcada apenas em trabalho e laços afetivos comuns. Tudo acaba adulterado, deturpado ou aliciado pelos devaneios de quem domina o tabuleiro das gigantescas movimentações de recursos humanos e materiais. Pobres dos peões, peças sempre sacrificadas como cobaias nos experimentos. Assim caminha a humanidade, cheia de sentimentalismos e práticas assassinas. Acredito que somos a única espécie animal portadora de loucura inata. Por conta dos estereótipos impostos nestas absurdas experiências coletivas são produzidas anomalias banais, c...