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Avelina

Hoje o dia amanheceu cinzento, frio e dominado por uma persistente chuva fina. Não é exagero dizer que a natureza estava expressando o sentimento das pessoas que privaram de alguma convivência com Avelina, que ontem partiu aos 59 anos ao fim de silenciosa guerra privada contra uma enfermidade insidiosa e cruel. Avelina era, sem dúvida, a anfitriã mais amada e gentil para os amigos da Catrefa, confraria sobre a qual costumo referir frequentemente neste blog. Sua risada contagiante fazia abrir um sorriso imediato em todos que gravitavam a sua volta, um traço peculiar da energia acolhedora desta brasileira nascida em São Borja com ascendência gaúcha e correntina. Na partida de Avelina estavam todos, familiares, parentes e amigos, consternados e atônitos com seu desaparecimento, mas os aplausos que irromperam no instante do seu sepultamento foram o tributo merecido ao brilho legítimo da sua corajosa e inspiradora maneira de viver. Avelina deixa dois filhos adultos e uma netinha ainda bebê,...

Sorte

Imagina o azar do cidadão que conquistou seu primeiro bom emprego como músico justamente na orquestra contratada para tocar na viagem inaugural do Titanic. Com certeza deve ter comemorado com seus parentes e amigos, talvez ficasse de trazer umas lembranças da América para seus afetos mais próximos, quem sabe até, voltou à sua velha igreja e orou agradecido ao Pai Celestial. Pois é, vai saber? Todos os músicos morreram tocando para os outros (se é que você me entende?). Sorte e azar são antônimos que às vezes convergem para um sentido único. A sorte também é dita com o sentido de destino, que por sua vez pode estar crivado de azares ou de pura falta de sorte. Chamamos os prêmios de loteria de Sorte Grande, um viés pragmático para expressar sorte. Ganhar uma fortuna com a mais simples das apostas é uma sorte inquestionável. Há um outro componente que integra este cenário sorte e azar, formando um triângulo perfeito do mais banal folhetim humano: a inveja. Quem ostenta o rosto corado da s...

Idiossincrasias

Definitivamente... uma palavra empregada com um sentido próximo de “é exatamente isto”, pelo personagem Raymond (Dustin Hoffman), é repetida à exaustão, no emocionante filme Rain Man (EUA, 1988). Pois eu tenho me sentido o próprio Raymond diante das aberrações que caracterizam o fosso do desentendimento nas relações interpessoais dos últimos tempos. Autismo social. Falo especificamente da guerra frenética por dinheiro e poder no meio de convívio. As idiossincrasias estão acirradas. Nem a máscara do politicamente correto consegue esconder o choque entre manias e melindres pessoais, uma verdadeira praga solta no ar. Funciona mais ou menos assim, se você é a parte que precisa de atenção de outrem, fica absolutamente centrado em um estado de humildade, tolerância e aprovação de quase todas as mazelas do seu interlocutor, nem questiona a vaidade de quem detém o poder, ou seja, quanto mais dócil mais amado. É difícil, não é? Todos, sem exceção, portamos nossa cota pessoal de idiossincrasias....

Titanic

Se você ainda não foi assistir, vá enquanto há tempo. A mostra Titanic em cartaz em um shopping da Zona Sul de Porto Alegre é bem mais do que uma exibição de objetos pessoais, mobílias e peças do mais famoso e trágico transatlântico da história posterior à revolução industrial. O conteúdo em si é atrativo o suficiente para saciar toda e qualquer curiosidade. Quando naufragou inundado de arrogância na noite gelada de 14 de abril de 1912, o Titanic levou às profundezas abissais do Oceano Atlântico um raro manancial da história de sua época, quando nove entre dez rotas inglesas levavam a New York. Na exposição é possível conferir aspectos que contam trajetórias pessoais de alguns dos seus mais de dois mil passageiros e membros da tripulação. O ambiente escuro e frio recria a atmosfera da noite trágica, ainda mais real com a trilha de fundo, melodias irlandesas e outras músicas da época. Por mais de 75 anos tudo ficou sepultado no breu silencioso há três mil e oitocentos metros de profundi...

Blondie

Eu nunca escrevi sobre a pastora-alemã que incendeia a rotina particular lá de casa: a Blondie. Blondie tem três anos e meio, é a campeã dos apelidos, só para registrar os mais pronunciados: Kika, Muki, Negaloka, Bilé e Mukika. Segundo minha esposa, a Blondie é trelelé, um equivalente aquela cara zonza do Zé Lelé, o primo caipira do Chico Bento. Pois a Blondie é a trelelé com o ouvido mais aguçado do reino canino, também uma incansável guarda da casa com seus latidos de xingamento distribuídos a toda sorte de estrangeiros e passantes barulhentos da minha rua. Na hora do passeio Blondie se transforma em uma dócil princesa da raça. Indiferente a tudo e a todos só tem olhos para sua dona, ou seja, um privilégio exclusivo pois se a caminhada for comigo sofre um déficit imediato de alegria, da ordem de cinquenta por cento. Então meu parceiro de passeios é o Panzer, o super pastor-alemão da família que, além de distribuir habilmente sua atenção aos donos, exige um braço de ferro por pa...

Natureza humana

A despeito da minha aparente calma bonachona (ilusão de ótica provocada pela barriga razoável que aderiu ao meu ego), sou um espírito inquieto. Passo os dias da minha vida buscando transformações de toda ordem, mesmo que bem adaptado aos arreios que a vida, pouco a pouco, foi maneando em meu ser ao longo dos anos. O convívio com a loucura alheia é uma das coisas que menos me apoquenta. Meu foco é mais internalizado e pessoal. Protagonizar minha própria natureza é tema de pródiga suficiência para instigar as fontes de lava da minha ânsia inata por discernimento e prazer. Discernimento e prazer. Quase tudo que um reles ser humano pode desejar e uma combinação difícil de manter em sincronia colaborativa. O discernimento tende a domesticar o prazer, enquanto este tem por hábito evitar o acompanhamento do primeiro. Mas quando se entendem: tudo fica melhor. Neste exato momento estou decidido a promover novas mudanças de hábitos para muito breve, são decisões proteladas por múltiplas contingê...

No espelho

Acabo de retornar do café com os amigos da catrefa, nome com que batizamos nosso heterogêneo grupo de convivas que diariamente comparece à divertida mesa do fumódromo, no térreo do prédio onde trabalho. Hoje discorríamos sobre um fato que é ao mesmo tempo trivial e intrigante, surgido por alguma razão que me foge à memória, que é a questão da imagem que vemos diante do espelho. Sérgio, André e Eu questionávamos se a imagem espelhada é idêntica a imagem vista por quem nos olha e, após inúmeras elocubrações e tantas incertezas, ficou evidente a dúvida que pairava sobre nossas melhores convicções sobre o evento. O esclarecimento começou a surgir após imaginarmos nossa própria imagem colocada diante de nós em duas versões: a imagem refletida no espelho e a imagem capturada em vídeo, exibida em uma tela grande ao lado do espelho. Veríamos a nossa imagem espelhada e outra capturada, ao mesmo tempo. E nos daríamos conta das incríveis diferenças entre as duas projeções. A começar pelo absurdo ...