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O tempo que resta

Recebi a notícia da morte do Fernando por telefone. Aos 48 anos, no auge da carreira e cheio de vida, Fernando parte após um bravo combate de meses contra um câncer fatídico, do tipo que não faz concessões. Encarou estoicamente sua tragédia pessoal e atendeu as mensagens de email dos colegas de trabalho até sua última centelha de consciência e força. Procurou todas as alternativas de cura, médicas e transcendentais, mas jamais lamentou seu destino o que me faz pensar que seu espírito partiu cristalino. Da última vez que falamos ele me fez refletir sobre o tempo que nos resta, dizendo que encarava cada novo dia como um presente supremo da vida. Desde o diagnóstico que alterou suas perspectivas ele passou a valorizar cada naco de vida e se deu conta de quanto tempo gastou com preocupações pobres de significado diante do que realmente importa para a verdadeira existência. O Fernando era um sujeito bem acima da média: inteligente, culto, muito divertido e um conciliador nato. Convivi pouco...

Bem-te-vi

Parei para tomar um cafezinho de quase reunião com meu valoroso sócio e amigo André na cafeteria térrea do prédio onde funciona nosso escritório. A mesa da “catrefa” fica à entrada de uma galeria que mede pouco mais de quinze metros de profundidade e tem uns seis metros de altura. Pois lá no alto, pousado no parapeito de uma abertura para entrada de luz, estava um estressado bem-te-vi. Descansava um pouco e em seguida fazia vários voos em busca da saída para o espaço aberto, extenuado pelo exercício voltava a pousar em algum outro ponto nas alturas. Pobre bem-te-vi, não conseguia distinguir a saída para a qual bastaria dar um voo rasante na direção certa para depois arremeter ao sabor da liberdade. Por mistérios que pertencem às mentes peculiares dos bem-te-vis, não conseguia ver o caminho. Fiquei com pena do pássaro. O que para mim era uma questão de simples manobra, para ele parecia impossível. Fiquei pensando na metáfora daquela cena: às vezes se tem asas, mas falta a carta de voo. ...

Rolling Stones

Pois eu não fui ver o Paul McCartney. Aliás não me fez falta nenhuma apesar de toda admiração que tenho pelas canções dos Beatles, mas sempre me identifiquei mais com o John Lennon. Dos vivos do rock, só sairia de casa para encarar fila de compra de ingressos se fosse para assistir a um show dos Rolling Stones. E tem que ser logo, porque o Mick Jagger já está meio velhinho para dançar e correr pelo palco daquele jeito, mas ainda o faz. E o Keith Richards fumando como um morcego? Meu ídolo. Os Rolling Stones são um fenômeno único e, segundo ouvi dizer, virão a Porto Alegre. Tudo mudou nos últimos quarenta anos - caiu o Muro de Berlim, as Torres Gêmeas, o Fidel Castro, todas as velhas bandas foram desfeitas - apenas os Rolling Stones seguem na estrada. Esta é a Terceira Idade que qualquer mortal pediria a Deus. Quanto ao show do Paul, ninguém diga que estou sendo injusto, pois quem assistiu ficou hipnotizado pela apresentação do eterno Beatle, que permaneceu no palco por três horas canta...

Lorita e o Parkinson

Minha mãe é portadora da Doença de Parkinson há cerca de quinze anos. Domingo fui até Canela com minha esposa tomar um café da tarde com ela e voltei satisfeito com a sua aparente boa saúde. Depois de tanto tempo de convívio com este calvário ela ainda se anima a visitar a pé sua irmã Teresa, que mora a cerca de quinhentos metros da sua casa. A motivação é forte, o estado de saúde da minha tia é preocupante. Ela que já acompanhou minha mãe em internação hospitalar em Porto Alegre hoje se encontra em situação muito pior. Quero visitar minha tia o mais breve possível, pois os relatos que ouvi de minha mãe são realmente muito inquietantes. Enfim, a Dona Lorita, mãe desta criatura que aqui escreve é uma mulher guerreira em seus quase setenta e cinco anos de idade. Foi assim a vida inteira. Viúva aos vinte e três com dois filhos pequenos para criar, pois meu pai foi vítima de um tipo de leucemia aos trinta e três anos, precisou superar condições financeiras e emocionais para tocar a vida ad...

Zica

Alguém aí sabe porque a gente chama uma fase desgraçada de zica ? Às vezes parece que as conexões externas se combinam de baixar um verdadeiro conjunto de ações terroristas contra nossa pobre condição humana. Nem estou falando de eventos radicais do tipo ficar preso em uma mina escura e abafada, sob seiscentos e cinquenta metros de terra e pedra, por quase três meses. Refiro-me à conjunção das pequenas e médias encrencas que alcançam nossas vidas sem considerar quanto organizados e previdentes possamos ser. A tal zica . Pois eu estou transpondo uma zica caprichosa no exato momento em que posto esta mistura de desabafo e reflexão sob à tormenta braba. Um entrevero de eventos desafiadores me acomete feito um ataque de abelhas, uma experiência que postulo apenas como metáfora e sem nenhum desejo de provar, afinal nem preciso deste adicional ao meu purgatório particular. Enfim, digo isto para me confortar e quem sabe confortar algumas almas amigas que eu sintonize por este canal, imersas ...

Ato de fé

Lembro com alguma nostalgia da minha religiosidade de infância, quando estudava em um Colégio Marista e assistia às missas dominicais na Catedral de Pedra, lá pelo final da década de 1960, na pacata cidadezinha de Canela. Com o passar dos anos fui me desobrigando da prática religiosa, porque já não era possível depositar tanta fé na Igreja Católica Apostólica Romana diante da evolução do meu conhecimento sobre a história política da Europa e das Américas, sem falar dos aspectos mais mundanos desta poderosa instituição que se outorgou a legítima porta-voz do Cristo. O amadurecimento me tornou “um católico de recenseamento” segundo o adágio popular, aquele sujeito que não lembra mais da última vez que assistiu a uma missa, mas diante da visita do pesquisador do IBGE marca no quesito religião: católico. O mais significativo no meu afastamento da igreja é que não perdi a crença em Deus. Virou uma fé mais ao estilo Frei Leonardo Boff, que um dia vi sendo entrevistado pela Marília Gabriela e...

Ainda as Torres Gêmeas

Nove anos se passaram e a sensação angustiante de que foi a poucos meses me acompanha, sempre que revejo cenas do dia do ataque e destruição do WTC em Nova York. Nunca estive na Big Apple, mas é uma cidade que aprendi a gostar sem conhecer, como uma paixão platônica que se mantém viva apesar da distância e, tendo a crer, duradoura justamente pela distância que me impede de banalizar sua realidade. Sem nunca ter andado por suas ruas e avenidas, testemunhei a construção da Ponte do Brooklyn nas últimas décadas do Século XIX, me empolguei e sofri com as obras radicais de Robert Moses abrindo as railways e demolindo bairros inteiros, aprendi a esperar a árvore de natal do Rockefeller Center e a neve no Central Park, vi o Empire State ser erguido em plena Depressão e contemplei múltiplas tonalidades de cores tingirem a cúpula do Prédio da Chrysler ao longo das estações, enquanto a Estátua da Liberdade vigiava os italianos recém-chegados à triagem da Ilha de Ellis. Nova York deve ser a cidad...