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Meia idade

Envelhecer é um fato inexorável. Exceto para os que morrem antes. Outro dia, um amigo de infância projetava o tempo que nos resta para realizar novos projetos utilizando a expressão “a gente que está na meia idade”. Aí resolvi questionar o conceito de meia idade. Ora, estou com 51 e só conheço uma única pessoa com mais de cem anos. Esta definição de meia idade é muito otimista. Pois bem, se a expectativa média de vida para os gaúchos, conforme foi divulgado em uma pesquisa recente, está na ordem de 75 anos, eu já adentrei pela terceira e última parte desta louca aventura que é a vida de um ser humano. Ainda há que se considerar que, salvo os acidentes de percurso, ninguém morre por estar cheio de saúde. Ou seja, via de regra, surge uma doença que ao final de seu curso desemboca na morte do indivíduo. Este processo costuma variar de caso para caso, mas vamos especular que na velhice seja razoável passar uns cinco anos sob um calvário de remédios, exames médicos e eventuais baixas em hos...

Gorbi

Ele viveu exatos quatorze anos, seis meses e dezesseis dias. Gorbi era um pastor-alemão de pelagem muito negra e os olhos amarelados de lobo. Seu pelo não era propriamente preto, se aproximava mais do grafite, sendo quase preto, com fios grossos e espetados na garupa e macios nas laterais do tronco. Muito grande, belo e assustador, mas absolutamente tranqüilo. Certa vez interrompi nossa corrida dominical pelo parque, sim o Gorbi também era meu companheiro de malhação, para assistir um grupo de patinadores que iniciava uma apresentação ao ar livre. Mantive-o preso à guia, imediatamente às minhas costas, quando de repente ouvi o grito desesperado de uma mulher. Seu bebê com pouco mais de um aninho havia se afastado da mãe e caíra sobre o Gorbi, agarrando-se ao focinho do cão. Naturalmente a mãe previu o pior. Mas o Gorbi apenas grunhiu baixinho e tascou uma lambida molhada na cara da criança. Virou o herói do parque, reunindo mais público para ver o “lobo bom” do que o show de patinação....

Tolerância zero

O assunto que domina as rodas de conversa neste Inverno de 2008 não é a baixa da temperatura nem as Olimpíadas da China, mas uma polêmica Lei Seca do Trânsito. Nem poderia ser diferente. De um dia para o outro, os motoristas brasileiros acordaram com uma Lei que penaliza qualquer consumo de bebida alcoólica detectável por aparelho de uso fiscalizador. É a Tolerância Zero. A Lei nasceu a partir de um verdadeiro clamor público por medidas mais severas para coibir a avalanche de acidentes com mortos e feridos em nossas estradas e cidades, sobretudo nos feriadões e nos finais de semana. Desde sua promulgação, a imprensa vem divulgando pesquisas em que se revela um apoio significativo dos motoristas entrevistados ao endurecimento da norma legal. A mim surpreendeu negativamente este rigor da tolerância zero. O ato de beber com moderação, tido como natural por gerações após gerações de pessoas que dirigem automóveis, passou a representar uma infração criminosa. A diferença entre o motorista q...

Modismos

Cada parcela da civilização é um reflexo da sua cultura e das idéias que predominam em determinado período e local da história. Assim mudam os tempos, surgem novos hábitos e, com eles, os modismos. Não me refiro apenas ao jeito de se vestir, as manias de consumo, as preferências por isto ou aquilo como na decoração dos ambientes, mas sim a determinados estilos pessoais e algumas habilidades que ganham ênfase em épocas específicas. Dentre as modas de hoje, tem uma que me chama atenção pelo peculiar sucesso que faz entre os jovens casais emergentes. É tal onda do homem que “sabe cozinhar”. Não me refiro ao domínio herdado de ancestrais em reproduzir receitas antigas da família ou da sua região de origem. A moda que me refiro é a do homem metido a chef, o gourmet sofisticado que entende de vinhos e de temperos exóticos. Um personagem comum em nossa era. Este tipo de cozinheiro não prepara refeições, na verdade ele executa uma arte cheia de segredos na elaboração de pratos, que refere como...

Visitas

Visitar os outros é uma arte. Uma frase ancestral diz que “todo hóspede é sagrado porque ele tem data para ir embora”. Sábio pensamento, saber a hora de dar adeus é tudo. Cada indivíduo é um universo de manias, de coisas que o agradam e de outras que o fazem perder o bom humor, ou pior ainda, que revelam sua monstruosidade. Minha mãe sempre foi um poço de paciência com as visitas e eram monumentais as visitas na casa da minha infância. Um exército de parentes próximos, vivendo por perto e dispostos a fazer visitas. Lembro do meu terror aos sábados, quando os pães caseiros fresquinhos esfriavam sob a toalha de pano xadrez e o cheirinho da casa recém-encerada atiçava ainda mais o meu desejo voraz de partir um pão fumegante e colocar uma generosa camada de nata fresca para comer, não uma, mas várias fatias. Mas aí chegavam as visitas. Do nada, em bandos sorridentes e esfomeados. Um desespero. Eu preferia me consumir de fome a expor aquela linda fornada de pães aos intrusos, porém minha mã...

Pobreza Educativa

Pobreza Educativa é uma brincadeira particular que eu e o Pablo, meu filho, criamos para dar um sentido mais otimista à falta de dinheiro. Por exemplo, se ele pedir um par de tênis como presente de aniversário e eu comprar uma marca diferente da sua preferência, ao invés de frustração e sorriso amarelo a gente acaba dando boas risadas da situação. Moral da história, nem sempre é possível presentear com aquele Nike de última geração, mas com espírito criativo sempre é plausível de encontrar um Acics bem maneiro. Com a diferença de investimento ainda dá para bancar aquela saída e jogar uma sinuquinha. No final das contas, é possível economizar um bom dinheiro sem abrir mão das cevas e das fritas. Claro que isto funciona com o Pablo, uma criatura que já nasceu madura e consciente da vida como ela é. Ser meu filho é uma experiência e tanto. A partir da idéia de viver de acordo com aquilo que se pode sem fazer dramas, nos divertimos analisando quase tudo a partir do filtro da Pobreza Educat...

O fim da lucidez

Na esteira do discurso politicamente correto emergiu um imenso oceano de conceitos que beiram o absurdo, de tal forma que o isolamento do indivíduo lúcido se assemelha ao terror da protagonista de Ensaio Sobre a Cegueira, romance de José Saramago. No livro, a personagem se vê cercada por uma galopante epidemia de cegueira e simula a própria perda da visão para ajudar seu marido, realmente acometido do mal, pois as pessoas cegas passaram a ser apartadas da “sociedade sadia” em campos de concentração improvisados. Logo não haveria de ter espaço para abrigar as hordas que acorriam a essas prisões. Por fim só restaria o caos e o desespero com uma cegueira branca se apoderando de todos. De volta ao mundo real, tento ser otimista com relação à inteligência humana e tenho a convicção de que só ela poderá nos resgatar do atoleiro dos discursos idiotizados e suas aplicações simplistas, que viraram uma praga da vida contemporânea. E do quê estou falando? Das abordagens hipócritas, tais como: cha...