Pular para o conteúdo principal

Visitas

Visitar os outros é uma arte.
Uma frase ancestral diz que “todo hóspede é sagrado porque ele tem data para ir embora”. Sábio pensamento, saber a hora de dar adeus é tudo.
Cada indivíduo é um universo de manias, de coisas que o agradam e de outras que o fazem perder o bom humor, ou pior ainda, que revelam sua monstruosidade.

Minha mãe sempre foi um poço de paciência com as visitas e eram monumentais as visitas na casa da minha infância. Um exército de parentes próximos, vivendo por perto e dispostos a fazer visitas. Lembro do meu terror aos sábados, quando os pães caseiros fresquinhos esfriavam sob a toalha de pano xadrez e o cheirinho da casa recém-encerada atiçava ainda mais o meu desejo voraz de partir um pão fumegante e colocar uma generosa camada de nata fresca para comer, não uma, mas várias fatias.
Mas aí chegavam as visitas. Do nada, em bandos sorridentes e esfomeados.
Um desespero. Eu preferia me consumir de fome a expor aquela linda fornada de pães aos intrusos, porém minha mãe jamais deixou de preparar uma generosa mesa para todos, com os meus pães, a minha nata e os outros tesouros do meu “olho maior do que a barriga”.

Certamente tanta visita era culpa da generosidade distraída da minha mãe, mas a sua paciente cortesia com os outros acabou por abrandar meu caráter egoísta.
Aprendi a controlar minha irritação, a ser amável e dividir o pão com os visitantes, mas por conta da minha obsessão por comida, também desenvolvi estratégias mesquinhas para separar e esconder porções de alimentos. Depois, a sombra de um parreiral de uvas no fundo do pátio, saboreava cada naco da minha reserva com a doce sensação de ter protegido o meu farnel dos bárbaros invasores. Eu era magro de ruim.
Minha mãe que tudo percebia, achava engraçado e raramente ralhava comigo.

O tempo passou, as pessoas já não se visitam como antigamente, porque a vida tratou de ocupar todo mundo e nossa família foi se distanciando. Bons tempos aqueles.

Hoje meus amigos mais próximos vêm à minha casa e os recebo com aquela alegria que herdei de minha mãe. De igual forma sou muito bem recebido por eles.
A diferença é que todos sabem respeitar aquele mágico sinal da boa visita: o convite. Aparecer sem avisar é só para quem é muito íntimo e assim mesmo muito arriscado.
O hóspede imprevisto pode produzir uma situação muito enervante.
Tem gente sem noção, que chega na hora que você reservou para ficar sozinho e livre de compromissos, ou que se oferece para ir junto no passeio do próximo domingo, que programa as férias conforme as suas, ou pior ainda, se oferece para ficar na mesma pousada da praia que você escolheu para se refugiar do mundo.

Bem, acho que tem alguns casos que são para centro espírita. Saravá meu pai!

Comentários

Anônimo disse…
Tu ainda é do tempo do pão de milho feito no forno de barro no fundo do pátio...eu já peguei a fase do pão sovado feito no fogão a lenha...o sentimento que tu tem pelo pão com nata eu tinha pelo bolo de noz moscada e o Deco pelo sopão dos sábados ao meio-dia. Sempre fomos educados e malandros o suficiente para lidar com os "Pinto Gonçalves".
Hoje em dia tudo é bem diferente, talvez a gte tenha se tornado uma das visitas indesejadas (com certeza não), mas é bom saber que sempre vai ter pão, nata e bolo nos esperando quando chegarmos na 817 do beco do Ernestão.
Gde abraço Tio Ju, baita texto!!!

Pablo.

Postagens mais visitadas deste blog

Ainda Estou Aqui

Com minhas desculpas ao Marcelo Rubens Paiva e ao Walter Salles, me utilizo do título do livro/filme tão em pauta nestes dias que antecedem a entrega do Oscar, para marcar meu retorno à rotina de escrever no meu blog. Foi difícil voltar. A poeira cobriu tudo com grossas camadas e para deixar o ambiente limpo, arejado e propício para este retorno foi preciso uma determinação férrea e uma coerência refletida, qual seja a de retomar o antigo blog e seguir a partir dele, porque o hiato de tempo sumido foi grande, parecia definitivo mas não foi e, ao retomar as crônicas quero preservar o que eu já havia feito. Os tempos mudaram, eu mudei em muitos aspectos, mas ainda sou a mesma pessoa, esta é a coerência que desejo preservar. A grande novidade é que neste ínterim, eu envelheci, não como metáfora mas como fato da vida. Escrevi minhas últimas crônicas aos cinquenta e poucos anos, retorno agora já bem próximo dos setenta, antes em plena atividade profissional e morando em Porto Alegre, agora ...

O Rei, o Mago, o Bardo e o Bobo.

Eles se encontraram por um breve tempo às bordas da floresta alta, nas franjas verdes do grande vale. O Rei, sempre magnânimo com todos que mostravam admiração e simpatia por suas ideias e preleções, contratou o Bobo para escrever suas memórias. O Mago que conhecia o Rei de muitas luas procurava descobrir as conexões emocionais com os novos amigos e celebrar as revelações deste encontro. O Bardo só queria levar suas canções e melodias ao coração de todos, especialmente ao do Rei, para o qual compôs uma bela ode. O Bobo amava os encontros e se divertia em pregar peças no Rei e propor charadas aos companheiros, mas também se emocionava e se encantava com os novos amigos e os seus talentos. Tudo andava de forma mágica e envolvente até o dia em que o Rei, olhou severo para o Bobo e sentenciou:  - Você distorce tudo o que eu digo, duvida de tudo que eu sigo e escreve somente a tua versão das coisas que eu lhe relato! Me sinto desrespeitado e quero que você saiba disso. A partir dali os ...

Velhas fotos coloridas

 Hoje aproveitei a chuva e o tempo gris para remexer nos velhos arquivos fotográficos que a Neca, minha namorada desde as Diretas Já, guarda com todo zelo e carinho. Minha busca, os amigos e os encontros com eles. E lá estavam, uma profusão de conexões, quase todas em celebrações diversas. É incrível como fazíamos festas, a vida era uma festa. E olha que problemas existiam e nunca foram poucos, mas tínhamos a juventude e o seu apetite insaciável por viver e se reunir. As fotos ainda conservam, em sua maioria, um colorido vivo impresso no papel fotográfico. Ninguém portava telefone celular, quando muito uma  câmera fotográfica ou uma filmadora. E a gente dançava, se fantasiava, ia para a praia em bando, comíamos muito, jogávamos qualquer coisa para passar as tardes de chuva enquanto alguém preparava bolinhos, sonhos, bolos e, é claro, pipoca. Bebíamos, éramos beberrões de cerveja, de batidinhas e boa parte de nós, fumava. Alguns, eu entre eles, não somente cigarros. E a gente v...