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O fim da lucidez

Na esteira do discurso politicamente correto emergiu um imenso oceano de conceitos que beiram o absurdo, de tal forma que o isolamento do indivíduo lúcido se assemelha ao terror da protagonista de Ensaio Sobre a Cegueira, romance de José Saramago. No livro, a personagem se vê cercada por uma galopante epidemia de cegueira e simula a própria perda da visão para ajudar seu marido, realmente acometido do mal, pois as pessoas cegas passaram a ser apartadas da “sociedade sadia” em campos de concentração improvisados. Logo não haveria de ter espaço para abrigar as hordas que acorriam a essas prisões. Por fim só restaria o caos e o desespero com uma cegueira branca se apoderando de todos.

De volta ao mundo real, tento ser otimista com relação à inteligência humana e tenho a convicção de que só ela poderá nos resgatar do atoleiro dos discursos idiotizados e suas aplicações simplistas, que viraram uma praga da vida contemporânea.
E do quê estou falando?
Das abordagens hipócritas, tais como: chamar o presidiário de cliente do sistema prisional, que evitam utilizar o termo pobre preferindo definições do tipo indivíduo socialmente excluído, das duvidosas ações afirmativas que conquistam votos e popularidade para certos políticos e da onda de marketing engajado que faz empresas privadas parecerem anjos da sociedade.
De repente todo mundo passou a se achar muito ético e falar de uma forma híbrida: políticos, empresários, técnicos, comunicadores, professores, médicos, enfim uma verdadeira legião de minimalistas da linguagem, dizendo as mesmas coisas sobre qualquer tema.
A atual moda do carbono neutro, que promete reparar a emissão de CO2 provocada por esta ou aquela atividade, segue esta tendência e ganhou a simpatia dos formadores de opinião porque é bacana parecer ecologicamente responsável, mas quem irá garantir que as mudas de árvores serão realmente plantadas e cuidadas até se constituírem em áreas recuperadas?
As soluções se virtualizaram e ponto, ninguém se interessa em verificar o quanto são reais.
Os discursos dos políticos perderam os últimos vestígios de clareza. Pior é saber que não é pouca gente que se deixa levar por tantas baboseiras, edificadas sobre frases prontas e que massacram a inteligência, promovendo a mediocridade do raciocínio.

Nem durante os piores anos de repressão política as pessoas foram tão alienadas.
Se não podiam se manifestar publicamente, ao menos pensavam por si mesmas e achavam meios criativos para expressar idéias. Havia menos consenso e muito mais vivacidade, apesar de todo cerceamento das artes e das mídias.
A lucidez está fora de moda. Nem a imprensa consegue propor novas abordagens porque ficou exultante demais com o seu próprio poder e substituiu a censura política por interesses comerciais imediatos. A produção artística se voltou para o umbigo dos seus realizadores e a arte ficou globalizada no pior sentido. Outro dia vi uma matéria com artistas chineses e obras que tanto poderiam ter sido feitas na Áustria quanto em Nova Iorque. Ainda resistem raros escritores, cineastas e outros, que nos tocam com visões mais legítimas e inovadoras. Mas é só observar a produção musical para se perceber que o talento naufragou na tecnologia.
O resultado destes modelos de pensamento e linguagem pré-formatados é o surgimento de uma geração tecnologicamente desenvolvida e culturalmente miserável, programada pelos princípios mais ordinários do marketing e seduzida pela superficialidade da internet.
Venceu a cultura da imagem. O conhecimento só tem valor se for para o consumo imediato.

Errar com a maioria, mais do que nunca, virou um método de sobrevivência.

Comentários

Anônimo disse…
Muito boa a colocação sobre a lucidez que nos falta diariamente.
Não é à toa que escolhemos com quem viver e para quem viver.

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