Naqueles dias que fechavam a década de 1960 eu pouco sabia do que se passava nas grandes cidades.
Ainda não havia tevê na minha casa e a cidade onde vivia era muito pouco conectada a Porto Alegre, exceto pelas viagens de ônibus que demoravam quase cinco horas para perfazer os cento e poucos quilômetros que separavam nosso cotidiano bucólico da agitação da capital.
Haviam alguns poucos ricos que já tinham grandes propriedades de veraneio na serra e, nos breves contatos em que as crianças nativas podiam estabelecer com eles, nos falavam das belezas da metrópole e de suas viagens para terras estrangeiras em navios e aviões que cruzavam o oceano.
Os dias eram longos e preenchidos com as aulas matinais, as tardes de trabalho na fábrica de camas para ajudar no orçamento doméstico, o futebol no campinho forrado de serragem de madeira e os passeios pelas matas próximas em busca de pinhão e à caça de passarinhos [naquela época os guris caçavam com suas fundas os pobres e desavisados sabiás].
Certo dia, esperando para passar a máquina no cabelo no salão do seu Horêncio, comecei a folhear uma revista O Cruzeiro já meio antiga e maltratada quando, de repente, deparo com uma foto em preto e branco de página inteira de um lutador de boxe americano.
A imagem do atleta negro com olhar desafiador e dedo em riste, ele estava com ataduras e sem luvas, se completava com o título da matéria que dizia Ele se Recusou a Lutar no Vietnam.
Mergulhei no texto que seguia por quatro ou cinco páginas com algumas fotos menores, onde se viam cenas de suas lutas, noutra ele beijava uma medalha de ouro olímpica e, logo ao lado, erguia com as duas mãos seu cinturão de campeão mundial dos peso-pesados.
Assim fiquei sabendo da existência de Cassius Marcelus Clay, que viria a se tornar Muhamad Ali.
Naquele exato momento me tornei um aficcionado pelo boxe e, aos poucos, fui descobrindo mais personagens, histórias, literatura e filmes sobre este esporte violento, solitário e elegante.
Naquela mesma semana consegui alguns retalhos de brim com minha mãe e uns pedaços de pelego com lã de ovelha e produzi dois pares de luvas de boxe.
Reuni meus amigos da rua e, nos fundos do pátio da minha casa, improvisamos um ringue de lutas, forrado com serragem [fácil de conseguir na fábrica de camas] e cercado com as medidas oficiais que eu havia pesquisado na biblioteca do colégio.
Lá realizamos muitas lutas, separando os moleques por tamanho e controlando o tempo dos rounds, três minutos de luta por um de descanso.
Meus pais e os pais dos outros piás encararam com naturalidade e ninguém veio se intrometer em nossa brincadeira, mas tínhamos o cuidado de não deixar ninguém voltar para casa com o nariz sangrando, eventualmente algum olho roxo não havia como esconder.
Revendo esta memória me dou conta que apesar da excitação causada pelas lutas, nunca aconteceu uma briga séria de verdade entre a gurizada. Exceto um dia em que um garoto apanhava demais do outro e não conseguia revidar à altura. No intervalo eu tentei motivá-lo a atacar com mais força e ele começou a chorar, jogou as luvas pra longe, arrancou uma das balizas do ringue e partiu para cima do desafeto. O outro se escondeu no velho galpão onde guardávamos ferramentas e ficou lá até cair a tarde e ter certeza que seu adversário já havia voltado para casa.
Estes retalhos de memória me fazem ver a beleza daquela época.
Nada tínhamos, mas todos viviam uma realidade simples e homogênea, ou parafraseando o título do documentário cinematográfico sobre a luta Ali versus Foreman: éramos reis!
Comentários
Te amo.
Nequinha