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Doce desgraça

Nosso etílico poetinha Vinícius de Moraes é quem se referia à vida como “uma doce desgraça”.
Assino embaixo.

Ninguém é tão miserável que não tenha algumas boas lembranças de momentos compartilhados em família, ou com amigos, quem sabe no romance e até mesmo no trabalho. Tampouco é impossível passar impune por esta experiência terrena, onde quem viver, sofrerá.
Se não for por si mesmo, será pelos outros e, quase sempre, pelo conjunto da obra.

Até porque nossas noções das coisas são construídas sobre os contrapontos.
Os nossos primeiros desenhos costumam definir o alegre e o triste com uma simples curva para cima e para baixo. Tudo já está posto.
Mas alguns modelos culturais e certas épocas chegam às raias do absurdo em seu esforço manipulador de negação do sofrimento e das frustrações.
Na minha adolescência o slogan do governo brasileiro era Nunca Fomos Tão Felizes.
Hoje, os nossos governantes juram que o Brasil é Um País de Todos.

Claro que a vida de verdade, individual e intransferível, se passa à revelia de todas estas tentativas de manipular as mentes e os sentimentos coletivos.
Por estranhos caminhos, a história de cada pessoa se mostra capaz de abstrair os mais densos e onipresentes cenários da história humana.
Em meio às guerras, aos cataclismos naturais e aos modelos políticos mais controladores da liberdade humana, é possível garimpar diamantes de felicidade, beleza e significação, capazes de nos insuflar coragem e força diante das nossas adversidades particulares.

Acredito que a importância da liberdade vem antes da felicidade, é uma pré-condição daquilo que entendo como individualidade, como alguém uma vez escreveu “para ser livre é preciso ter a capacidade de não confundir verdade com lugar comum”.
Este é o tipo de discernimento que conta para se conquistar a liberdade e quiçá, para nos fazer construir uma vida feliz e consciente de suas fragilidades.
Por pensar assim, admiro profundamente as pessoas que não ficam se lamentando da vida, que não renegam suas escolhas do passado e que apreciam de forma genuína a simplicidade nas coisas e nos relacionamentos.

Com liberdade, coragem e a legitimidade de ser verdadeiramente o que se é, talvez nem sejamos felizes como em um comercial de margarina, mas seremos capazes de extrair alguma doçura e prazer dessa nossa desconhecida e finita existência.

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