Pular para o conteúdo principal

Nem me fala!

A coisa está feia.

Não bastassem as sequelas da crise econômica mundial que nos fez entrar o ano com o coração na mão e a cabeça cheia de incertezas, sobreveio-nos o inverno mais frio das últimas décadas. Depois a chuva, o calorão, mais chuva e o frio retornando.
O clima hostil não chegou sozinho, se fez acompanhar por uma gripe nova, mortífera e sorrateira, que varou nossas fronteiras como um tango lúgubre e nos despertou para a macabra realidade, onde a vida e a morte dançam de rosto colado.

Vamos sobreviver, tenho esperanças, e lembrar daquele ano de 2009 como um tempo negro que nossas almas atravessaram em arrastada procissão.

Outro dia, quando os ventos loucos já sopravam pela pampa gaúcha, reuni alguns dos meus amigos para confraternizar à beira do fogo, regada a bom vinho e saboreada em tiras de picanha, pinhão na chapa e caldo de feijão.
Lá pelas tantas, repassando os convidados para oferecer o pinot noir que descobri por acaso e se tornou o meu bálsamo na tormenta, percebo que os camaradas Giuliano e Marcelo estão em profunda troca de queixas sobre as mazelas destes dias.
Quando me aproximo da dupla, noto que deixaram de falar de súbito, entrando em um estado de imersão. Fico observando e evito quebrar o transe em que mergulharam.
Neste instante, sem voltar o olhar para seu interlocutor, Giuliano murmura baixinho:
- Ai, ai.
E Marcelo, sem desviar o olhar do chão, traga fundo o seu Marlboro e emenda:
- Nem me fala.

Sábia interlocução. Ai, ai. Nem me fala.
Poucas coisas dizem tão claramente o que é o estado de espírito que tomou conta da gente diante deste cenário, no qual estamos cruelmente inseridos.
Daria um epitáfio perfeito na lápide de quem se quedou após lutar contra tantas e tão diversas agruras destes tempos agourentos. Alguém mordaz o suficiente para fazer a própria morte se revestir de um doce sarcasmo.

Mas o pinot noir será o tamiflu de nossos espíritos, nos fazendo vencer as tormentas e renovando as forças que aquecem nossos corações.
É bem verdade que a dose precisa ser administrada, mas são contra-indicações muito pequenas diante do prazer. Que tem preço sim, cerca de quinze reais na promoção.

Comentários

Egon disse…
Parabens pelas belas cronicas. Com teu blog cadastrado em meus Favoritos sempre confiro os novos textos. Abraços, do afilhado, Egon
Luiz Fernando disse…
E aí Juarez. Gostei muito do teu artigo publicado no Eco dos Sinos sobre o filme Revolutionary Road. Vou ter que ver esse filme. A Cátia manda lembranças. Qdo vieres a Esteio me procura para conversarmos. Um abraço fraterno.
Luiz Fernando do Amaral (Prefeitura de Esteio).

Postagens mais visitadas deste blog

Chamem David!

Afora ser um dos maiores talentos da pintura francesa de todos os tempos, Jacques Louis David foi sem dúvida o de maior presença nos eventos que mexeram com a vida dos franceses entre a Revolução Francesa e o Império de Napoleão Bonaparte. Um talento que sobreviveu ao seu tempo, mas sob um crivo mais severo: um artista chapa branca. Capaz de aderir a qualquer governo ou ideologia. David retratou as batalhas e símbolos dos anos de afirmação da Revolução Francesa, tão importante que quando alguma coisa espetacular estava por acontecer e merecia um registro pictórico, alguém do núcleo de Robespierre bradava: “chamem David!”. Retratou a morte de Jean Marat de forma esplêndida e, de um jeito que só ele sabia fazer, escapou da guilhotina quando seu protetor Robespierre foi condenado. Caiu nas graças de Napoleão e virou o pintor oficial do novo imperador. Seguiu sendo o pintor oficial da França até que Luís XVIII, irmão do decapitado Luís XVI, assumiu o comando da nação após o e

Só falta você

Ê-ê-ê-ê, só falta você, capricha no samba pra gente vencer! Este era o refrão do samba enredo que o último bloco de carnaval do qual fiz parte, nos meus tempos de juventude e solteirice na cidade de Canela, levou para a competição de blocos do Clube Serrano. O tema escolhido foi Luzes da Ribalta, uma homenagem a Charles Chaplin, eu fui incumbido dos desenhos das alegorias e estandartes, além de atuar como Carlitos em uma cena especialmente feita para a apresentação no clube. Por algum motivo acho que exagerei na dramaticidade, era uma cena inspirada no filme O Garoto, interpretado pelo Paulo Rizzo, pois quando encerramos a performance (que incluía um violinista tocando Smile enquanto a bateria permanecia em silêncio), irromperam os aplausos mas as pessoas choravam copiosamente. Acho que ganhamos o prêmio de criatividade e inovação, mas foi o fim da minha vida de momo. Antes participei de um bloco chamado Inimigos do Ritmo, que assumidamente não era lá estas coisas com ritmo e mar

República do Marais

Passei minha vida administrando muito pouco dinheiro, quando não à beira da mais pura dureza, portanto nunca projetei muitas viagens que não fossem terrestres. Conheço pessoas que amam viajar, quanto mais melhor, e para lugares bem diversos dentro do país ou ao redor do planeta. São descolados, aventureiros e até esportistas, gente que habita aeroportos e hotéis nos quatro cantos do mundo. Muitos viajam por razões profissionais, de forma mais ou menos frequente, enfim é um povo acostumado às viagens, aos diversos climas e fuso-horários. No meu caso, toda viagem é uma tortura que inicia à medida que sua data aproxima. Sou entocado, gosto de ficar em casa e sair de automóvel por perto para voltar logo.  Detesto voar. Sem falar nas esperas em aeroportos. Mas se o destino for Paris, gasto meu último tostão e suporto tudo com resignação. Nos últimos cinco anos, por 17 dias anuais, o bairro do Marais é meu lar em Paris. Isto é simplesmente mágico, o velho casario da Rue Charlot,