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Meu avô

Algumas pessoas são especialmente importantes em nossas vidas.
Meu avô materno, o Velho Alfredo, influenciou definitivamente o meu modo de lidar com a tal da existência que, conforme ele costumava dizer, a gente ganha de presente sem pedir e um dia nos é retirada sem que tenhamos chance de apelar.
Aliás, Velho Alfredo é um ícone na memória da maioria dos seus mais de cinquenta netos, dos quais sou o primeiro da turma e, por isto, tive a oportunidade de conviver por mais tempo com este saudoso tropeiro da serra gaúcha.
Meu avô viveu seus últimos anos em um rancho de madeira onde as frestas deixavam varar o gélido vento minuano, tanto que seu catre ficava estrategicamente protegido por um enorme e antigo roupeiro. Na pequena cozinha o assoalho dava lugar a um piso de terra batida, onde um indefectível fogãozinho à lenha garantia um calor mínimo para que suportasse o inverno.
Velho Alfredo morreu no fim do século passado com seus noventa anos, quase preenchendo por completo este segmento de tempo.

Um homem simples que viveu uma vida tipicamente ancestral.
Foi tropeiro por muitos anos, levando gado dos Campos de Cima da Serra até as charqueadas da região de Pelotas em longos dias de viagem, dormindo à beira de sangas e se alimentando à base de charque e dos eventuais churrascos de alguma rês repontada pela peonada.
Passou pela vida tratando da saúde com ervas nativas e benzeduras, teve catorze filhos com minha avó e mais três em relacionamentos paralelos. Por conta desta vida dupla foi expulso de casa pela esposa e teve que enfrentar a mágoa de suas filhas mulheres até o fim da vida.
Jamais lamentou pelos erros cometidos. Aceitava os fatos conforme eles se apresentavam e tinha coragem para ser autêntico com naturalidade. Com o passar dos anos reconquistou a amizade de minha avó, em parte pela imensa prole que tinham em comum, mas também por conta do caráter firme que o fazia ser respeitado nas suas escolhas.
Trilhou o caminho do homem solitário e jamais aceitou as propostas bem intencionadas para morar com seus filhos na idade avançada, abdicando deste conforto e proteção.
Vivia em um terreno de tamanho razoável que o permitia manter um cavalo, criar uns porcos, algumas galinhas poedeiras e a pequena horta, com poucas hortaliças e muitas ervas de chá.
Passava seus dias tomando chimarrão e fumando seus cigarros marca-diabo, lembro bem da sua barba e bigodes já amarelados pelo alcatrão e da sua tosse persistente.
Mas a memória fundamental que tenho de meu avô está diretamente ligada ao brilho vivo dos seus olhos verdes e da risada fantástica que contagiava a todos, sempre seguida pela tosse.
Não tinha jeito de convencer o Velho a procurar um médico, exceto uma vez, já na casa dos oitenta anos, quando uma hérnia abdominal irrompeu após um dia de cavalgada extenuante.
Ele visitava os filhos, em Canela e Gramado, a cavalo ou de charrete, mas preferia a montaria.

Naquela ocasião foi trazido a Porto Alegre para ser operado. Tudo transcorreu bem e virou atração para enfermeiras, médicos e outros pacientes, tanto pela sua franca simpatia quanto pelas pilchas que vestia na sua chegada ao hospital, incluindo o fumo-de-rolo, maços de palha e sua inseparável faca prateada, um kit muito incomum para um paciente de cirurgia.
Ao receber alta foi hospedado no apartamento da filha mais velha, minha Tia Iraci, que morava na capital com seu marido e dois filhos. Eu passei para fazer uma visita e o encontrei taciturno, sentado no cantinho do sofá da sala com aquelas clássicas pantufas de lã nos pés.
Seus olhos se encheram de lágrimas quando me viu, mas não se queixou de nada, disse que estava bem e só queria voltar para o seu rancho para não dar mais trabalho à família.
E assim, solito com seus pensamentos, viveu os últimos anos.
Em um domingo de outono, quando eu o levava de volta ao seu rancho depois de uma boa churrascada, contou que vinha tendo um sonho repetido: “um velho aparece e me chama para cuidar das suas ‘criações’ porque os animais estão caindo numa boçoroca e ele diz que só confia em mim para este serviço”. Disse que este sonho devia ser um aviso de que a sua morte se aproximava. Ouvi em silêncio e depois mudamos de assunto.
Algumas semanas depois retornei à Canela, desta vez para acompanhar o seu sepultamento.

Comentários

Anônimo disse…
O Velho Alfredo merecia uma estátua no melhor estilo O Laçador lá em Canela...das poucas lembranças, o tenho com uma grande figura.
Sou suspeito, mas os textos da família são sempre os melhores!!!
Grande abraço.

Pablo.
Gui Scheinpflug disse…
Mas, bah! Se tu nao fosse escritor por profissao, eu te metia amelhor pilha pra ser! até eu fiquei com saudades do Vô Alfredo.

Tem uns personagens assim, que a gente se recorda pelo resto da vida. Gente com personalidade, gente que veio ao mundo pra somar, pra fazer diferença.

Eu tenho um padrinho que é tipo o teu avô. Ele sentava pra beber o mate, as unhas pretas de trabalhar na lida do campo, porcos, etc. Faltando um dedo que perdeu sei lá como. E contando com um singelo orgulho, nao dava nem pra chamar aquilo de orgulho, já que a simplicidade era grande, da neta que era modelo na Europa, que era capa da revista Elle.

Bem, o que posso dizer é que homens com H maiúsculo geralmente dão bons frutos, como voce.

Vi a foto nova, bateu maior saudade da Neca, manda beijos pra ela!

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