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Inverno 73

A noite estava úmida.
Sempre quis iniciar um texto com esta frase. É em torno dela que se desenvolve um diálogo impagável entre Billy Cristal e Danny De Vito, no filme Joguem a Mamãe do Trem. O personagem de Cristal é um escritor em crise que tenta começar uma nova obra e está empacado na frase de abertura... Enfim, um filme que merece registro.

Pois a noite estava úmida e gelada, passava longe da meia-noite e eu seguia com meu capote preto, chapéu e botas, levando um exemplar de O Exorcista debaixo do braço. Seguia a pé, naquele distante ano de 1973, a caminho de casa.
Estava em Gramado e minha casa ficava em Canela, portanto tinha uns bons nove quilômetros de chão pela frente. Naquele tempo dos meus saudosos dezesseis anos, era costume pegar carona de uma cidade à outra, sendo bastante fácil, haviam muitos conhecidos trafegando por ali e até alguns turistas que conheciam o hábito, mas após uma certa hora, os carros desapareciam por completo.

Balada de pobre no meu tempo era mais ou menos assim, com algumas variáveis de menor ou maior roubada. Naquela noite, estive no bar de um conhecido hotel onde me juntei aos amigos gramadenses para beber conhaque e jogar dica (adivinha-palavras) até altas horas, em reunião regada a amendoim torrado que o barman nos franqueava. Até porque nos dias de inverno daquela época o hotel ficava às moscas, ao contrário do que ocorre nos tempos atuais, quando todos acorrem ao inverno hoteleiro da serra gaúcha. Na verdade éramos os amigos do barman.

Na volta para casa o frio castigava com aquele ventinho cortante, não havia nenhum vestígio de luar e o breu da estrada aumentava a sensação de isolamento, naquela época inexistia iluminação e a pista simples tinha um acostamento mínimo.
Nenhum carro à vista, nem sombra de gente, a mata densa roçava as bordas da pista e, de repente, comecei ouvir um barulho abafado de passos pesados vindo dos arbustos. Naturalmente apertei o ritmo.
Assustado e tentando manter o autocontrole, lutava contra as provocações de minha mente, que sarcasticamente me trazia trechos inteiros do livro de William Peter Blatty.
Evocava o padre Merrin, fadado a se enfrentar com o demônio. Podia sentir no peito a culpa do padre e psicanalista Karras, que não podia oferecer uma assistência mais digna à sua mãe doente, deixando-a suplicante em um hospital público.
Minhas próprias culpas se confundiam com os dilemas morais dos religiosos e, com o coração disparado, podia sentir a presença do príncipe das trevas, com seu sorriso e bafo de enxofre a um palmo da minha nuca. Então... rezava.
Primeiro em pensamento, depois num murmúrio baixinho e, finalmente, em voz alta. Ave maria, pai nosso, ato de contrição e a velha e boa oração do anjo da guarda.

E assim o medo foi cedendo seu lugar a um contentamento simples e genuíno por estar vivo e poder desfrutar daquele frio intenso, praticamente dono daquela estrada vazia e feliz por estar voltando pra casa.
Uma das mais belas visões da Via Láctea que registro em minha memória, vem daquela noite da minha distante adolescência. Chegando em casa, aproveitei as brasas que restavam no fogão à lenha para preparar pinhões na chapa e um bom café preto, depois li até o dia raiar.

Fui assistir ao filme O Exorcista somente meses depois, em visita rápida a Porto Alegre, onde filas e filas se formaram nos dias de estréia. Não me impressionei muito, afinal graças a William Peter Blatty o diabo já se tornara um velho conhecido meu.

Comentários

Tiago disse…
Sinistro!!!

Abraços, chefe.

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