Pular para o conteúdo principal

Postagens

Saudade

“O fim do termo saudade como um charme brasileiro de alguém sozinho a cismar”, esta frase é um dos diamantes da poesia de Belchior, o grande compositor nordestino recentemente guindado à mídia por estar desaparecido e logo encontrado no Uruguai, onde concedeu entrevista para imprensa anunciando um novo trabalho a caminho. Independentemente deste sumiço ter sido uma estratégia de marketing ou decorrência do acúmulo de problemas pessoais do autor, a obra de Belchior é muito respeitável. Entre tantas qualidades, ela retrata ângulos preciosos de diferentes faces deste sentimento que denominamos saudade. Em outra canção ele diz que “por força deste destino um tango argentino me vai bem melhor que um blues”, ou ainda, naquela letra imortalizada pela voz de Elis Regina “na parede da memória esta lembrança é o quadro que dói mais”. Sou um saudosista. Tenho saudade das fogueiras gigantescas que minha Escola Marista preparava para a Festa Junina, com a participação dos guris do colégio, que divi...

Malhando

Está fazendo dois meses e duas semanas que frequento uma academia de ginástica. Não reparem, mas pessoas da minha idade falam assim “academia de ginástica”. Três vezes por semana. E o mais inacreditável: estou gostando. É bem verdade que não foi nada alentador nos primeiros dias. Quando cheguei me colocaram em uma esteira eletrônica, acertaram a velocidade recomendada e me deixaram mais desconfiado que cachorro de brigadiano em dia de Grenal. Até então, minha experiência com esteiras se restringia aos três testes ergométricos que realizei em épocas distintas por conta de exames de saúde e, assim mesmo, com as mãos bem agarradas às laterais do trem para não sair dos trilhos. Resultado: desci da geringonça, o mundo continuou a rodar abaixo dos meus pés e cruzei tropeçando por cima do aparelho ao lado. Um mico total. Tive esperanças de que ninguém tivesse visto. A Neca viu. E riu muito. Abstraí e segui em frente. Agora estou mais a vontade, quase um rato de academia. Mas ainda não me acos...

O diabo

Lúcifer, o anjo das trevas. O exilado. Todo católico da minha geração cresceu sob a ameaça implacável de Satã em suas múltiplas manifestações, presente na cátedra da fé desde as primeiras catequeses. Sempre achei a estampa do diabo excessiva e caricata demais para expressar uma persona tão implacável e temida. Por certo merecia uma imagem mais complexa e melhor concebida de embalagem, com perdão da terminologia mercadológica. Porém outros cristãos e alguns poetas agnósticos já haviam abordado este paradigma muito antes de mim, este pessoal antigo é terrível, e dentre eles, o alemão Goethe, construiu lá pelo início do século dezenove, um demônio deveras respeitável. Fausto o protagonista que dá título à sua obra, é o homem que vende a alma para o diabo em troca de recuperar a juventude, obter riqueza e o amor de uma bela mulher. A ironia do autor é que Fausto é um homem de bem, já entrado na velhice, mas que se torna cobaia de uma aposta feita entre Deus e Lúcifer. Afinal, se Lúcifer fo...

Nem me fala!

A coisa está feia. Não bastassem as sequelas da crise econômica mundial que nos fez entrar o ano com o coração na mão e a cabeça cheia de incertezas, sobreveio-nos o inverno mais frio das últimas décadas. Depois a chuva, o calorão, mais chuva e o frio retornando. O clima hostil não chegou sozinho, se fez acompanhar por uma gripe nova, mortífera e sorrateira, que varou nossas fronteiras como um tango lúgubre e nos despertou para a macabra realidade, onde a vida e a morte dançam de rosto colado. Vamos sobreviver, tenho esperanças, e lembrar daquele ano de 2009 como um tempo negro que nossas almas atravessaram em arrastada procissão. Outro dia, quando os ventos loucos já sopravam pela pampa gaúcha, reuni alguns dos meus amigos para confraternizar à beira do fogo, regada a bom vinho e saboreada em tiras de picanha, pinhão na chapa e caldo de feijão. Lá pelas tantas, repassando os convidados para oferecer o pinot noir que descobri por acaso e se tornou o meu bálsamo na tormenta, percebo que...

Meu avô

Algumas pessoas são especialmente importantes em nossas vidas. Meu avô materno, o Velho Alfredo, influenciou definitivamente o meu modo de lidar com a tal da existência que, conforme ele costumava dizer, a gente ganha de presente sem pedir e um dia nos é retirada sem que tenhamos chance de apelar. Aliás, Velho Alfredo é um ícone na memória da maioria dos seus mais de cinquenta netos, dos quais sou o primeiro da turma e, por isto, tive a oportunidade de conviver por mais tempo com este saudoso tropeiro da serra gaúcha. Meu avô viveu seus últimos anos em um rancho de madeira onde as frestas deixavam varar o gélido vento minuano, tanto que seu catre ficava estrategicamente protegido por um enorme e antigo roupeiro. Na pequena cozinha o assoalho dava lugar a um piso de terra batida, onde um indefectível fogãozinho à lenha garantia um calor mínimo para que suportasse o inverno. Velho Alfredo morreu no fim do século passado com seus noventa anos, quase preenchendo por completo este segmento ...

Ficando velho

Estou ficando velho. Não me refiro aos meus cinquenta e dois anos, mas eles ratificam esta percepção. Voltei a me exercitar regularmente, pois além da sobrevivência também preciso reduzir o peso e tenho um joelho que avisa o fim próximo da minha pelada de futebol. Ainda bem que nem tudo que é bom está tão ameaçado quanto o jogo de bola, mas já não posso simplesmente viver do meu velho e bom jeito desregrado de ser. Tenho que considerar de forma séria e definitiva a ruptura com o tabagismo, após quase trinta anos fumando a saúde começa a apresentar a conta dos estragos. Não tem jeito, a gente envelhece por fora e por dentro. É difícil assimilar esta realidade. Consultei um cardiologista para verificar minhas condições de retomar uma atividade de academia. O médico jovem e muito especializado, também pneumologista, analisou meu aspecto clínico como positivo e liberou a atividade física quase sem ressalvas. Mas terei que fazer uma série de exames e isto sempre assusta um pouco. Enfim. A c...

Revolutionary Road

Se você ainda não viu, veja o filme de Sam Mendes, Revolutionary Road, que chegou ao mercado brasileiro com o título de Foi Apenas Um Sonho. O livro, que originou esta mais recente e magnífica obra do diretor de Beleza Americana, foi publicado em 1961 por um escritor chamado Richard Yates. Depois de assistir a película, o livro entrou pra minha lista de leituras obrigatórias em 2009. Fiquei profundamente impressionado com a história do casal Wheeler, protagonizado pela dupla Kate Winslet e Leonardo Di Caprio, uma trajetória desnorteante sobre os descaminhos conjugais e que vai muito além do óbvio. A forma como o adultério surge no enredo desafia os limites dos nossos conceitos sobre a vida amorosa. Sam Mendes adora fustigar a linha que separa nossos limites emocionais da nossa própria insanidade existencial. Significativamente ele coloca os filhos fora da questão. As crianças estão presentes, mas não há concessão ao vínculo com a prole para dar uma desculpa à perda de sintonia do casal...