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Ensaiando a ruptura


Maio de 1997.
Hoje eu deveria estar comemorando meu quadragésimo segundo aniversário.
Sei que meus amigos esperaram aquela chamada avisando do churrasco que deveria se iniciar lá pelas oito e meia da noite, também de que não deveriam levar presentes e sim alguma bebida para garantir a alegria etílica do encontro.
Costumavam ser assim minhas comemorações nos últimos anos, nem lembro  quantos com essa turma.

Mas desta vez, uma angústia difusa me fez sumir, já com alguns dias de antecedência.
Rodei sem um destino definido, apontei o carro na direção das montanhas e depois de uns trezentos quilômetros, já exausto, parei na primeira pousada que avistei da estrada.
Cravada em uma pequena elevação, a casa de madeira com alpendre simpático e três araucárias bem ao lado da porta principal, me pareceu adequada e silenciosa.
Manobrei para o pequeno estacionamento com piso forrado de pedrinhas de basalto e escolhi uma vaga no abrigo simples tipo meia água, onde haviam dois carros parados e cerca de oito lugares livres.
Nos fundos da casa principal num aclive suave, meia-dúzia de cabanas rústicas com telhados em riste, se espalhavam em distâncias irregulares pelo terreno.
Além dele, campos infindáveis e alguns capões salpicados nas ondulações das coxilhas.
Nenhuma outra edificação visível para onde fosse dirigido o olhar.

A moça da recepção, com suas maçãs rosadas, quase nem ligou para minha presença.
Sem me olhar nos olhos e com certo cansaço informou que tinha quatro cabanas vagas, o valor de cem reais à diária para o mínimo de dois pernoites ou cento e vinte para um único dia com café da manhã, perguntou por quanto tempo eu pretendia ficar, o número de pessoas que me acompanhavam e se as bagagens estavam no carro.
Quando eu disse estar sozinho saiu imediatamente da sua letargia e me examinou por um tempo que me pareceu infindável.
Inconformada perguntou se eu aguardaria pela chegada de alguém.
Confirmei que não, que pretendia ficar por uma semana e gostaria de pagar antecipado, palavras que a deixaram animada mas com a ressalva de que na saída era preciso conferir o uso eventual do frigobar da cabana.
Não fiz objeção, escolhi a cabana mais ao fundo e ela me instruiu sobre o café da manhã, dizendo que eu também poderia almoçar e jantar na casa caso avisasse com antecedência.


Preenchi um formulário tipográfico, paguei e recebi minha chave dispensando a ajuda do rapaz, muito magro e tímido, que ela chamara para levar minhas coisas.
- Só tenho esta mochila, não se incomode que eu mesmo carrego.

Assim comecei meus dias de exílio.

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