Pular para o conteúdo principal

Rue de Fleurus, 27.

Qual é a motivação principal para se fazer uma viagem?
Durante a maior parte da minha vida eu tive a sensação de que não precisaria conhecer in loco nenhum lugar do mundo, porque minhas paisagens próprias e próximas me bastavam.
O custo financeiro, os longos percursos, a mudança da alimentação e o afastamento da minha casa, dos meus bichos e das minhas rotinas, justificavam suficientemente o meu desinteresse em viajar.

Além disto tudo, considerava que conhecer a história, a cultura e os costumes de cidades e nações, incluindo aí as minhas preferências, era uma viagem muito mais "real" ao ser realizada através da arte, especialmente da literatura e dos grandes escritores.
Conjugando o texto vivo com obras audiovisuais, especialmente o cinema, e as boas reproduções gráficas das outras artes, bem catalogadas e legendadas, eu possuia o melhor conhecimento e a mais viva experiência sobre os aspectos mais relevantes de qualquer lugar, povo e suas idiossincrasias.

Assim os primeiros cinquenta anos da minha existência se passaram entre três cenários básicos: a pequena cidade de Canela da minha infância e adolescência, depois na fase adulta a Praia da Pinheira e seus limites próximos e, dominando a maior parte do tempo do meu enredo particular, Porto Alegre.

Na Praia da Pinheira cheguei a projetar um título para o que poderia se tornar um conto quando, minha mulher e eu, ficamos quinze dias e só deixávamos a toca para ocupar nosso ponto fixo e diário na Praia de Cima, uma faixa de areia com cerca de 700 metros de largura e uma vista fantástica diante dos olhos. Todos os dias, curtíamos o mesmo cenário com uma iluminação sempre diferente, um vento e até mesmo a sua ausência, o mar calmo ou mexido, mas nunca o mesmo que se viu ontem, embora fosse.
O título que referi ao conto ainda não escrito dessa memória, seria Os Prisioneiros da Paisagem.

Aos poucos, algumas concessões foram sendo feitas, Rio de Janeiro, Recife, João Pessoa, S. Paulo, mas todas acabavam por reforçar a convicção de que melhor mesmo é ficar no canto já conhecido.
Algo começou a mudar no contato com Buenos Aires.
Sentir o pulso da vida portenha dentro da sua própria paisagem, se misturar com as pessoas nas ruas e ouvir sua cantilena tão peculiar, sentir o cheiro do café ao passar em frente às padarias, despertou o meu espírito.

Quando visitei Paris, ano passado, eu já dizia "o oposto do que eu disse antes".
Queria caminhar às margens do Sena, sentir a imponência da Catedral de Notre Dame e andar pelas ruas que François Truffaut, Jean Luc Godard, Victor Hugo, Charles Baudelaire e tantos outros me mostraram das mais variadas formas.
Percebi que a realidade ampliava imensamente minha própria imaginação, assim Paris mudou de vez as minhas opiniões sobre viajar.

Em maio estarei por lá de novo, mais duas semanas em que Neca e eu andaremos por lugares novos e outros já conhecidos, atrás de um novo detalhe e em busca de novas descobertas.
Agora sabemos muito mais e não teremos a ansiedade da primeira vez, assim o tempo de visita na Shakespeare & Co. será mais longo, o café com croque madame no Deux Magots também será mais descansado e a noite na Rive Gauche não terá hora para acabar.
Porque agora eu aprendi que estar de corpo presente confere a força definitiva do ritual de viver.

E assim, embora pareça bobagem, haverá uma profunda emoção verificar que o número 27 da Rue de Fleurus, ainda está lá, mesmo que Gertrude Stein já tenha partido há muito.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ainda Estou Aqui

Com minhas desculpas ao Marcelo Rubens Paiva e ao Walter Salles, me utilizo do título do livro/filme tão em pauta nestes dias que antecedem a entrega do Oscar, para marcar meu retorno à rotina de escrever no meu blog. Foi difícil voltar. A poeira cobriu tudo com grossas camadas e para deixar o ambiente limpo, arejado e propício para este retorno foi preciso uma determinação férrea e uma coerência refletida, qual seja a de retomar o antigo blog e seguir a partir dele, porque o hiato de tempo sumido foi grande, parecia definitivo mas não foi e, ao retomar as crônicas quero preservar o que eu já havia feito. Os tempos mudaram, eu mudei em muitos aspectos, mas ainda sou a mesma pessoa, esta é a coerência que desejo preservar. A grande novidade é que neste ínterim, eu envelheci, não como metáfora mas como fato da vida. Escrevi minhas últimas crônicas aos cinquenta e poucos anos, retorno agora já bem próximo dos setenta, antes em plena atividade profissional e morando em Porto Alegre, agora ...

O Rei, o Mago, o Bardo e o Bobo.

Eles se encontraram por um breve tempo às bordas da floresta alta, nas franjas verdes do grande vale. O Rei, sempre magnânimo com todos que mostravam admiração e simpatia por suas ideias e preleções, contratou o Bobo para escrever suas memórias. O Mago que conhecia o Rei de muitas luas procurava descobrir as conexões emocionais com os novos amigos e celebrar as revelações deste encontro. O Bardo só queria levar suas canções e melodias ao coração de todos, especialmente ao do Rei, para o qual compôs uma bela ode. O Bobo amava os encontros e se divertia em pregar peças no Rei e propor charadas aos companheiros, mas também se emocionava e se encantava com os novos amigos e os seus talentos. Tudo andava de forma mágica e envolvente até o dia em que o Rei, olhou severo para o Bobo e sentenciou:  - Você distorce tudo o que eu digo, duvida de tudo que eu sigo e escreve somente a tua versão das coisas que eu lhe relato! Me sinto desrespeitado e quero que você saiba disso. A partir dali os ...

Velhas fotos coloridas

 Hoje aproveitei a chuva e o tempo gris para remexer nos velhos arquivos fotográficos que a Neca, minha namorada desde as Diretas Já, guarda com todo zelo e carinho. Minha busca, os amigos e os encontros com eles. E lá estavam, uma profusão de conexões, quase todas em celebrações diversas. É incrível como fazíamos festas, a vida era uma festa. E olha que problemas existiam e nunca foram poucos, mas tínhamos a juventude e o seu apetite insaciável por viver e se reunir. As fotos ainda conservam, em sua maioria, um colorido vivo impresso no papel fotográfico. Ninguém portava telefone celular, quando muito uma  câmera fotográfica ou uma filmadora. E a gente dançava, se fantasiava, ia para a praia em bando, comíamos muito, jogávamos qualquer coisa para passar as tardes de chuva enquanto alguém preparava bolinhos, sonhos, bolos e, é claro, pipoca. Bebíamos, éramos beberrões de cerveja, de batidinhas e boa parte de nós, fumava. Alguns, eu entre eles, não somente cigarros. E a gente v...