Pular para o conteúdo principal

Pobreza Educativa II


Pobreza Educativa era uma brincadeira particular que, eu e meu filho, criamos para emprestar um sentido mais otimista à nossa escassez de dinheiro.

Funcionava mais ou menos assim, se ele me pedisse um par de tênis como presente de aniversário e eu comprasse uma marca diferente da sua preferida, ao invés de um sorriso amarelo, a gente se divertia com a situação.
Afinal nem sempre o orçamento familiar permitia comprar um Nike de última geração, mas com um pouco de criatividade era possível adquirir um Asics, bem maneiro e projetado especialmente para a prática do vôlei, o esporte preferido dele.
Com a diferença de investimento ainda era possível sairmos para jogar sinuca.
No fim das contas era possível economizar sem abrir mão do churrasco e dos passeios. Claro que isto funcionava com o Pablo, um menino que já nasceu atento às realidades da vida e nunca fez muito drama com as coisas.

Nossa ideia era viver de acordo com aquilo que as circunstâncias permitiam sem choramingar, assim decidimos chamar nossa filosofia particular de Pobreza Educativa. Em nossas incansáveis conversas sobre o tema, incluíamos quase tudo em nosso observatório, desde a situação do nosso time até as picuinhas cotidianas dos que nos cercavam.

Separar os eternos chorões das pessoas que tinham reais dificuldades financeiras e que nem por isto viviam se lamentando, era uma das diferenciações que fazíamos.
Também identificávamos pessoas sempre que fingiam uma situação maravilhosa para encobrir realidades próximas à penúria, estas nos pareciam pagar caro demais por uma imagem desnecessária.
Pobreza Educativa não era uma forma de conformismo, mas antes uma atitude de dignidade diante das condições nem sempre fáceis de garantir a sobrevivência.
Separando caprichos de sonhos verdadeiramente importantes, era uma busca pela racionalidade para evitar a eterna insatisfação com aquilo que se tem, deixando de aproveitar as coisas boas que a vida sempre nos oferece.

Os princípios da Pobreza Educativa só funcionam para quem não perde tempo com pena de si mesmo, também para quem tem lucidez para perceber que os destinos são escolhas pessoais. A razão é base da capacidade individual para transformar condições desfavoráveis em motivação para seguir em frente.
Aceitar desigualdades, limitações, diferenças e imperfeições familiares é uma arte, que exige jogo de cintura, sabedoria e certo apreço pela natureza humana.
Somos menos trágicos quando nos olhamos com mais realismo, ninguém é tão perfeito nem tão torto que não possa melhorar. Cada temperamento é absolutamente único e o discernimento tem muito pouco a ver com o nível de escolaridade ou a renda familiar. Se o momento não permite comer picanha, uma carne de peito é perfeita para um assado de panela.

No fim, o que conta mesmo é o apetite. Sem ele, nenhuma fome é saciada.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Chamem David!

Afora ser um dos maiores talentos da pintura francesa de todos os tempos, Jacques Louis David foi sem dúvida o de maior presença nos eventos que mexeram com a vida dos franceses entre a Revolução Francesa e o Império de Napoleão Bonaparte. Um talento que sobreviveu ao seu tempo, mas sob um crivo mais severo: um artista chapa branca. Capaz de aderir a qualquer governo ou ideologia. David retratou as batalhas e símbolos dos anos de afirmação da Revolução Francesa, tão importante que quando alguma coisa espetacular estava por acontecer e merecia um registro pictórico, alguém do núcleo de Robespierre bradava: “chamem David!”. Retratou a morte de Jean Marat de forma esplêndida e, de um jeito que só ele sabia fazer, escapou da guilhotina quando seu protetor Robespierre foi condenado. Caiu nas graças de Napoleão e virou o pintor oficial do novo imperador. Seguiu sendo o pintor oficial da França até que Luís XVIII, irmão do decapitado Luís XVI, assumiu o comando da nação após o e

Só falta você

Ê-ê-ê-ê, só falta você, capricha no samba pra gente vencer! Este era o refrão do samba enredo que o último bloco de carnaval do qual fiz parte, nos meus tempos de juventude e solteirice na cidade de Canela, levou para a competição de blocos do Clube Serrano. O tema escolhido foi Luzes da Ribalta, uma homenagem a Charles Chaplin, eu fui incumbido dos desenhos das alegorias e estandartes, além de atuar como Carlitos em uma cena especialmente feita para a apresentação no clube. Por algum motivo acho que exagerei na dramaticidade, era uma cena inspirada no filme O Garoto, interpretado pelo Paulo Rizzo, pois quando encerramos a performance (que incluía um violinista tocando Smile enquanto a bateria permanecia em silêncio), irromperam os aplausos mas as pessoas choravam copiosamente. Acho que ganhamos o prêmio de criatividade e inovação, mas foi o fim da minha vida de momo. Antes participei de um bloco chamado Inimigos do Ritmo, que assumidamente não era lá estas coisas com ritmo e mar

República do Marais

Passei minha vida administrando muito pouco dinheiro, quando não à beira da mais pura dureza, portanto nunca projetei muitas viagens que não fossem terrestres. Conheço pessoas que amam viajar, quanto mais melhor, e para lugares bem diversos dentro do país ou ao redor do planeta. São descolados, aventureiros e até esportistas, gente que habita aeroportos e hotéis nos quatro cantos do mundo. Muitos viajam por razões profissionais, de forma mais ou menos frequente, enfim é um povo acostumado às viagens, aos diversos climas e fuso-horários. No meu caso, toda viagem é uma tortura que inicia à medida que sua data aproxima. Sou entocado, gosto de ficar em casa e sair de automóvel por perto para voltar logo.  Detesto voar. Sem falar nas esperas em aeroportos. Mas se o destino for Paris, gasto meu último tostão e suporto tudo com resignação. Nos últimos cinco anos, por 17 dias anuais, o bairro do Marais é meu lar em Paris. Isto é simplesmente mágico, o velho casario da Rue Charlot,