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Neve


Posso apostar que meu tio Ari, irmão do meu pai, morreu entre 19 e 20 de agosto de 1965.

Isto porque tio Ari achou de morrer durante a pior nevasca que o sul do Brasil registrou em cem anos, desde as lendárias neves de semanas inteiras, contadas pelos muito antigos.
Que neve a de 1965! De sumir com a paisagem e durar dois dias inteiros.

Eu tinha oito anos e brincava de submarino na salinha da minha casa.
Fogão a lenha com a chapa vermelha de tão quente e panos forrando as frestas do chalé.

Brincava de submarino me alojando sob uma instalação de cadeiras que eu mesmo fazia para o desespero da minha mãe, imitando com o canto da boca o efeito sonoro da série de televisão Viagem ao Fundo do Mar, que eu descobrira vendo tevê na casa da tia Noêmia.
Até porque, naquela época, a luta para garantir três refeições diárias para a família, era tudo.

Voltando ao fundo do mar, lá estava eu falando como se fosse o Almirante Nelson e o Capitão Lee, trocando informações. Como toda criança improvisava tudo, roteiro, diálogos e todos os efeitos sonoros conhecidos em 1965.

De repente alguém bate com desespero em nossa porta.
A Mara, minha prima, entra esbaforida e aos prantos, tão entrouxada que mal se vê seus olhinhos inchados de chorar, a boca vermelha e assada do frio.

- Ju, meu pai morreu! Agora a pouco, no hospital.

Fiquei estarrecido. Tio Ari saiu de casa para fazer uns exames, ainda semana passada estava consertando nossas bicicletas e contando piadas.
Mais tarde fiquei sabendo que ele tinha apenas 49 anos.
Fiquei com tanta pena da Mara que a convidei para entrar no meu submarino, mas tinha que parar de chorar. Não sei como, ela simplesmente fungou parou de chorar e entrou já querendo escolher a nova história pra brincar.
Deixei a doida a vontade pois fiquei com peninha dela... eu sabia o que era perder um pai.

As longas 24 horas de velório do tio Ari dariam um bom roteiro cinematográfico.
A parentada veio e se instalou na minha casa e na casa da Mara, café preto e carreteiro, jogo de cartas e vai conversa, recordações, piadas, choros, abraços e rezas.
Mas essa é uma outra história que, hora destas, vou tentar reconstituir na memória.

Finalmente enterramos o tio Ari, a neve cedeu, a cidade ficou enlameada e seguiu gelada.

Comentários

Margit disse…
Estou começando a ficar preocupada, nosso amigo está muito saudosista.
Allyson Nascimento disse…
Impressionante como alguns fatos são tão marcantes na infância que depois de décadas ainda nos lembramos, apesar de muitos se esquecerem.
Pablo. disse…
Não há neve nem quaisquer outros fatos que superem o triste fim do Tio Jorge, com todo respeito póstumo ao Tio Ari.
Colocando em dia, novamente, a leitura no Blog.
Pablo.

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