Pular para o conteúdo principal

Inimigos na trincheira

O relacionamento entre irmãos de sangue é sabidamente marcado pelos mais variados sentimentos e manifestações do caráter humano.

Dadas às circunstâncias da vida, somente na fase adulta é que se revela o legítimo teor das ligações fraternas. Assim, irmãos que passaram a infância às turras podem vir a ser parceiros indefectíveis na maturidade e outros melosos companheiros dos velhos tempos podem se confrontar de forma irreversível no futuro.

O cronista Otto Lara Resende, segundo dizia seu amigo Nelson Rodrigues, forjou a máxima de que “o mineiro só é solidário no câncer”, um jeito mordaz de olhar sua própria origem cultural e a humanidade por extensão. Já vi coisa bem pior acontecer entre irmãs, além da negação de solidariedade uma infame reação de fugir às responsabilidades que poderiam advir de ter que partilhar os cuidados e o convívio com a mãe, frágil e velha.

Não é por acaso que a primeira história de relacionamento fraterno da Bíblia traz a tona um sujeito invejoso e frustrado que assassina o irmão abençoado.

Em um filme do Woody Allen dos Anos 1970, ele reencontra sua velha paixão em Nova Iorque e conversam animadamente em um café. De repente a mulher começa a perguntar pelo irmão dele, com quem ela tivera um affair, causando mau humor no personagem de Allen. Percebendo sua reação ela pergunta “você não gosta do seu irmão?” e ele dá uma resposta que merece figurar na galeria das melhores frases sobre as relações familiares: “gosto dele como um irmão, mas não meu”.

Neste infindável folhetim de morbidades existem personagens que carregam um grande manancial de responsabilidade sobre o roteiro original, os pais. Como todo mundo sabe, inclusive Confúcio e Freud, a coisa toda começa na criação e nas personalidades das matrizes. A infelicidade das relações conjugais se mascara em inumeráveis distorções no trato com os filhos e, muitas vezes, o chamado amor familiar esconde uma fábrica de monstruosidades.

Ainda bem que nem todas as famílias degeneram para a mesquinharia e o ódio, mas é significativa a proporção daquelas que descambam para o trato doentio na evolução de suas conexões. Portanto nem é por falta de possuir irmãos que o filho único é causa de apreensões, na verdade isto pode até ser uma grande vantagem. O que realmente angustia (os pais) é a falta de uma reserva e a projeção de tudo sobre uma só pessoa. Então faz diferença a qualidade do projeto e seus autores.
Na China se diz, há milhares de anos, que de pano ruim não se faz um bom saco.

Comentários

Gui Scheinpflug disse…
Oi Ju! Gostei das tuas divagações fraternas, que me proporcionaram cá as minhas próprias divagações. Pano ruim não faz saco bom, mas um pano bom, por si só, também não é garantia de um saco de boa qualidade. O que fazer então, se não apenas exercitar o maior exercício de todos, que é amar incondicionalmente e aceitar as pessoas assim, do jeitinho como elas são. beijinhos!
Unknown disse…
Desavenças entre irmãos já vem desde a antiguidade, quando a história conta a tradição de que o primeiro filho sempre herdava a fortuna da família enquanto o segundo filho tornava-se padre, desde então há sentimentos de inveja e desavença entre irmãos. Hoje em dia o motivo financeiro já não é tão relevante, pois, ambos tem direito a partes iguais da herança dos pais, porém a disputa é por atenção,poder, afeto e reconhecimento. Uma pena que hoje em dia poucos irmãos consigam trocar a inveja pela admiração. Não se pode ter tudo nem ser o melhor de tudo neh Juarez??
Um grande abraço

Postagens mais visitadas deste blog

Chamem David!

Afora ser um dos maiores talentos da pintura francesa de todos os tempos, Jacques Louis David foi sem dúvida o de maior presença nos eventos que mexeram com a vida dos franceses entre a Revolução Francesa e o Império de Napoleão Bonaparte. Um talento que sobreviveu ao seu tempo, mas sob um crivo mais severo: um artista chapa branca. Capaz de aderir a qualquer governo ou ideologia. David retratou as batalhas e símbolos dos anos de afirmação da Revolução Francesa, tão importante que quando alguma coisa espetacular estava por acontecer e merecia um registro pictórico, alguém do núcleo de Robespierre bradava: “chamem David!”. Retratou a morte de Jean Marat de forma esplêndida e, de um jeito que só ele sabia fazer, escapou da guilhotina quando seu protetor Robespierre foi condenado. Caiu nas graças de Napoleão e virou o pintor oficial do novo imperador. Seguiu sendo o pintor oficial da França até que Luís XVIII, irmão do decapitado Luís XVI, assumiu o comando da nação após o e

Só falta você

Ê-ê-ê-ê, só falta você, capricha no samba pra gente vencer! Este era o refrão do samba enredo que o último bloco de carnaval do qual fiz parte, nos meus tempos de juventude e solteirice na cidade de Canela, levou para a competição de blocos do Clube Serrano. O tema escolhido foi Luzes da Ribalta, uma homenagem a Charles Chaplin, eu fui incumbido dos desenhos das alegorias e estandartes, além de atuar como Carlitos em uma cena especialmente feita para a apresentação no clube. Por algum motivo acho que exagerei na dramaticidade, era uma cena inspirada no filme O Garoto, interpretado pelo Paulo Rizzo, pois quando encerramos a performance (que incluía um violinista tocando Smile enquanto a bateria permanecia em silêncio), irromperam os aplausos mas as pessoas choravam copiosamente. Acho que ganhamos o prêmio de criatividade e inovação, mas foi o fim da minha vida de momo. Antes participei de um bloco chamado Inimigos do Ritmo, que assumidamente não era lá estas coisas com ritmo e mar

República do Marais

Passei minha vida administrando muito pouco dinheiro, quando não à beira da mais pura dureza, portanto nunca projetei muitas viagens que não fossem terrestres. Conheço pessoas que amam viajar, quanto mais melhor, e para lugares bem diversos dentro do país ou ao redor do planeta. São descolados, aventureiros e até esportistas, gente que habita aeroportos e hotéis nos quatro cantos do mundo. Muitos viajam por razões profissionais, de forma mais ou menos frequente, enfim é um povo acostumado às viagens, aos diversos climas e fuso-horários. No meu caso, toda viagem é uma tortura que inicia à medida que sua data aproxima. Sou entocado, gosto de ficar em casa e sair de automóvel por perto para voltar logo.  Detesto voar. Sem falar nas esperas em aeroportos. Mas se o destino for Paris, gasto meu último tostão e suporto tudo com resignação. Nos últimos cinco anos, por 17 dias anuais, o bairro do Marais é meu lar em Paris. Isto é simplesmente mágico, o velho casario da Rue Charlot,