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The end

Nestas últimas semanas assisti com perplexidade a ocorrência de fatos radicais e opostos se consumarem na vida de amigos muito próximos. Dois eventos envolvendo doenças em certa medida imprevistas, que resultaram em um final feliz e uma perda lastimável.

O abençoado pela sorte foi meu amigo General, um gentleman jovial e sorridente de 64 anos de idade. Pois o General acordou indisposto na manhã de uma quarta-feira, com um discreto formigamento no braço direito e uma queimação no peito, semelhante ao sintoma de azia.
Neste dia o desjejum lhe desceu indigesto, mas a sua verve não alarmista o fez dar algum tempo para seu organismo se refazer, afinal após seis décadas vividas em variados tipos de condição, o corpo deu provas de ser capaz de suportar alguns sacolejos do metabolismo e certas marés do funcionamento digestivo.
A manhã se arrastou incômoda para o General. Compareceu ao cafezinho social diário, mas seus companheiros não apareceram. Ainda assim tomou um expresso e fumou um ou dois cigarros por força do hábito.
Almoçou no refeitório de costume, mas sua indisposição se mostrava irredutível. Então decidiu tomar providências. Pegou um microônibus de linha e seguiu para o Instituto de Cardiologia, no trajeto avisou um dos filhos que não estava muito bem e por via das dúvidas estava a caminho de uma consulta no endereço que lhe pareceu mais indicado.
Foi examinado e internado imediatamente, encaminhado para um cateterismo e quase sofreu uma parada fatal do seu velho e bom coração. Mas passou ao largo. Ganhou um stend, algo como uma pequena mola espiral para desobstruir uma artéria coronária e recuperar o fluxo vital do sangue. Após um breve estágio na unidade de tratamento intensivo, evoluiu para o leito de internação normal e logo retornou ao convívio dos amigos.
Parou de fumar e está considerando a possibilidade de adotar uma atividade física moderada.

Na outra face da moeda, a morte revelou sua mórbida efígie, lançando sua sentença inapelável sobre o Neri, porteiro do edifício comercial onde funciona meu escritório.
Pessoa de fina estirpe sobre a qual pretendo escrever muitas crônicas, o Neri possuía a verve estóica dos cowboys solitários que Hollywood e os comerciais do Marlboro eternizaram.
Elegante nos seus 65 anos, dono de um humor inteligente e uma aparência talhada em pedra, era o comandante absoluto das soluções inteligentes nos conflitos do condomínio. Trabalhava no prédio desde a fundação, ocupando o posto de porteiro da tarde e noite, onde com discrição se permitia fumar seus 37 ou 38 cigarros diários.
O Neri foi meu conselheiro favorito. Diferenciava verdade de lugar comum com uma argúcia de que poucas pessoas são capazes. Vestia a sua vida simples como quem coloca um terno feito sob medida, bem ajustado e sem reparos que merecessem suas queixas.
Aos poucos foi me revelando alguns aspectos da sua vida privada. Três ou quatro vezes lhe dei carona, tarde da noite, quando meu expediente se alongava e coincidia com o seu horário de saída. Morava longe e precisava caminhar um bom quilômetro da parada de ônibus até a casa simples na qual residia de aluguel.
Cuidava da esposa de saúde frágil e de uma cunhada com distúrbios mentais, além da matilha de cães que ele se empenhava em preservar. Aposentado com pouco e trabalhando pelo seu parco salário, dia a dia Neri protagonizava o milagre da multiplicação dos peixes.
Dia destes se queixou. Uma dor lombar forte. Foi ao médico em busca de tratamento e pedir alguns dias para retornar bem ao seu posto. Tencionava voltar em uma semana.
Há poucos dias compareci ao sepultamento do meu amigo, que foi vitimado por uma infecção generalizada de origem incerta.
Vai fazer muita falta às vidas que ele cuidava com tanto zelo. Mas anteontem ele me veio em um sonho fantástico, dizendo que o chamaram para um emprego bem remunerado no Louvre e que estava bem pois teria um cantinho sossegado para trabalhar. Bem ao seu gosto.

Comentários

false disse…
juarez, eu e charles precisamos ter o prazer da tua companhia já!
hehehe saudades

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