Pular para o conteúdo principal

Fantasmas particulares

Quem instigou as narrativas relatadas nesta crônica foi minha amiga Michele Philomena, uma jovem artista plástica com uma certa vocação para a investigação dos mistérios espirituais.
Pois a Michele gosta de por à prova o ceticismo dos seus amigos e, às vezes, quer saber se porventura alguém já vivenciou uma experiência definível como sobrenatural. Algumas são contadas a seguir.

Lembrei do dia em que me despedi do Edson, amigo que estava de partida para o Rio de Janeiro e faria o trajeto de motocicleta. Saí do escritório e fomos conversar à beira do Guaíba. A maior parte do tempo ele falou da sua rotina como mergulhador em águas profundas, na Bacia de Campos, um serviço radical de manutenção nas bases das plataformas de petróleo. Mencionou a escuridão, seus dias de confinamento nas câmaras de descompressão e algumas visões, estranhas experiências de quando se encontrava trabalhando dentro do escafandro, em mar profundo. Algo que ia além de peixes estranhos e luminosos.
Passara a estudar o espiritismo e tentou me explicar sobre formas de obsessão a que estávamos sujeitos. Eu, cético de pai e mãe, ouvia-o com respeito e sem entender muito bem o porquê daquela conversa. Num determinado momento o Edson me puxou pelo braço e disse “fica atento porque a tua alegria pode ser uma porta aberta para entrada de um espírito atormentado, a gente tem que se cuidar Gonçalves”.
Aquilo me provocou uma descarga elétrica na medula e olhei subitamente para trás. Vi três pessoas olhando diretamente para mim, ao mesmo tempo, um sujeito estirado na grama, uma mulher sentada em um banco fazendo tricô e um velho caminhando com um agasalho esportivo. Voltei-me rapidamente e meu amigo, como um sorriso meio estranho me falou “é isto aí, fica ligado”. Não tive coragem de olhar para trás e conferir o que tinha visto. Às vezes menciono este fato ao Edson, mas ele nunca lembra.

A Michele teve uma visão mais estranha ainda, na sua casa em Morungava. Exausta de trabalhar ao computador madrugada adentro, resolveu descansar um pouco no sofá da sala. Cochilou por uns minutos e, quando abriu os olhos, viu uma mulher sentada na cadeira em frente à tela do seu micro. Achou que estava sonhando acordada, esfregou os olhos e olhou novamente, com toda atenção. Não havia dúvida, a mulher estava lá, de costas para ela e ainda girando levemente a cadeira para o lado contrário. Apavorada Michele cravou a mão no interruptor e, com a luz acesa, sua visita desapareceu.

O Fábio não estava presente no dia em que eu e a Michele falávamos destes contatos com o mundo dos espíritos, mas ele teve uma visão que merece registro. Visitávamos um amigo no hospital que se recuperava de uma cirurgia cardíaca. Cerca seis pessoas conhecidas cercavam o paciente, que desfilava pelo quarto sem camisa e arrastando o suporte do soro, disposto a contar os detalhes da sua operação.
A imagem daquele peito costurado me causava certa angústia e, quando o Fábio me convidou para irmos até a cafeteria, aproveitei o pretexto para sair de cena.
No caminho reparei que ele estava lívido, perguntei se estava passando bem e ele me disse ter visto um grupo de espíritos vestidos de branco avançar em nossa direção. Um indivíduo do grupo perguntou para outro, que parecia ser um professor, se o rapaz que buscavam era o que carregava o soro, ao que o outro, apontando para frente, respondeu que o procurado estava no final do corredor. E se foram adiante.

Existe um velho ditado judeu que diz: “quatro olhos ao mesmo tempo, nunca viram um fantasma”.
De qualquer forma a Michele parece ter razão, a maioria das pessoas com quem eu converso sobre o assunto acabam me contando alguma história de premonição ou de avisos sobre a morte de um parente que mora longe, enfim de fantasmas particulares. E William Shakespeare também dá razão às suspeitas da Michele quando forja sua célebre frase em Hamlet, “há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”.

Comentários

O Ju... te liga! Quem é esse cara ai parado do seu lado?
beijo,
Michele Philomena
Anônimo disse…
Eu hein? Sai prá lá! Adoro a expressão do Verissimo..."ateu não praticante". Isso já diz tudo.

Postagens mais visitadas deste blog

O Rei, o Mago, o Bardo e o Bobo.

Eles se encontraram por um breve tempo às bordas da floresta alta, nas franjas verdes do grande vale. O Rei, sempre magnânimo com todos que mostravam admiração e simpatia por suas ideias e preleções, contratou o Bobo para escrever suas memórias. O Mago que conhecia o Rei de muitas luas procurava descobrir as conexões emocionais com os novos amigos e celebrar as revelações deste encontro. O Bardo só queria levar suas canções e melodias ao coração de todos, especialmente ao do Rei, para o qual compôs uma bela ode. O Bobo amava os encontros e se divertia em pregar peças no Rei e propor charadas aos companheiros, mas também se emocionava e se encantava com os novos amigos e os seus talentos. Tudo andava de forma mágica e envolvente até o dia em que o Rei, olhou severo para o Bobo e sentenciou:  - Você distorce tudo o que eu digo, duvida de tudo que eu sigo e escreve somente a tua versão das coisas que eu lhe relato! Me sinto desrespeitado e quero que você saiba disso. A partir dali os ...

Velhas fotos coloridas

 Hoje aproveitei a chuva e o tempo gris para remexer nos velhos arquivos fotográficos que a Neca, minha namorada desde as Diretas Já, guarda com todo zelo e carinho. Minha busca, os amigos e os encontros com eles. E lá estavam, uma profusão de conexões, quase todas em celebrações diversas. É incrível como fazíamos festas, a vida era uma festa. E olha que problemas existiam e nunca foram poucos, mas tínhamos a juventude e o seu apetite insaciável por viver e se reunir. As fotos ainda conservam, em sua maioria, um colorido vivo impresso no papel fotográfico. Ninguém portava telefone celular, quando muito uma  câmera fotográfica ou uma filmadora. E a gente dançava, se fantasiava, ia para a praia em bando, comíamos muito, jogávamos qualquer coisa para passar as tardes de chuva enquanto alguém preparava bolinhos, sonhos, bolos e, é claro, pipoca. Bebíamos, éramos beberrões de cerveja, de batidinhas e boa parte de nós, fumava. Alguns, eu entre eles, não somente cigarros. E a gente v...

Ainda Estou Aqui

Com minhas desculpas ao Marcelo Rubens Paiva e ao Walter Salles, me utilizo do título do livro/filme tão em pauta nestes dias que antecedem a entrega do Oscar, para marcar meu retorno à rotina de escrever no meu blog. Foi difícil voltar. A poeira cobriu tudo com grossas camadas e para deixar o ambiente limpo, arejado e propício para este retorno foi preciso uma determinação férrea e uma coerência refletida, qual seja a de retomar o antigo blog e seguir a partir dele, porque o hiato de tempo sumido foi grande, parecia definitivo mas não foi e, ao retomar as crônicas quero preservar o que eu já havia feito. Os tempos mudaram, eu mudei em muitos aspectos, mas ainda sou a mesma pessoa, esta é a coerência que desejo preservar. A grande novidade é que neste ínterim, eu envelheci, não como metáfora mas como fato da vida. Escrevi minhas últimas crônicas aos cinquenta e poucos anos, retorno agora já bem próximo dos setenta, antes em plena atividade profissional e morando em Porto Alegre, agora ...