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Cortina de fumaça

Este é um texto politicamente incorreto, portanto retirem as crianças da sala.
Quero homenagear alguns fumantes que deixaram sua marca em nossas existências através de suas belas obras e de suas irreverentes atitudes diante da vida.

O Niemayer, cem anos, trabalhando e dando entrevista. Um fenômeno.
No dia do seu aniversário, recebeu a imprensa, convidados e familiares, sentado sob a marquise da sua famosa Casa das Canoas, no Rio, fumando calmamente as suas cigarrilhas cubanas e conversando lucidamente com todas as pessoas.
Sua sabedoria é digna do Dalai Lama, pois entre tantas pérolas, ensina que o sucesso não tem importância nenhuma, que a arquitetura só faz sentido quando tem harmonia com a natureza e se for merecedora da contemplação das pessoas.
Fala que a morte é um evento banal, mas que não é bom ficar pensando muito nela.
Eu admiro o Niemayer por estas atitudes descoladas, para mim ele nem precisava ter projetado nenhum edifício e, ainda assim, seria admirável por esta serenidade de um velho samurai que chegou ao centenário de vida, sempre empunhando sua espada.

Outro que viveu quase um século foi o músico cubano Compay Segundo.
Viveu até os noventa e seis anos, fumando. O Compay era uma figura, muito elegante e dono de um sorriso cativante. No documentário Buena Vista Social Club ele rouba a cena quando lembra as origens do seu gosto por charutos, lembrando que aos cinco anos já acendia os puros a pedido de sua avó.

Recentemente o Brasil perdeu o magnífico ator Paulo Autran, aos oitenta e sete anos, um fumante inveterado que confessou ter superado quase tudo na vida, mas nunca se livrou do vício de fumar. Trabalhou quase até o fim e morreu de doença relacionada ao tabagismo. Uma vez o assisti no Teatro São Pedro, na peça O Tributo, inigualável.

O fumante Mário Quintana uma vez advertiu que é preciso desconfiar das pessoas que não fumam porque cada tragada é um suspiro disfarçado. Ele também teve o privilégio de envelhecer produtivo.
Que poeta este Quintana, gosto muito de um trecho do poema O Mapa em que ele diz “quando eu for um dia destes, poeira ou folha levada, no vento da madrugada, serei um pouco do nada, invisível, delicioso...”.

E para fechar esta cortina de fumaça, não poderia deixar de reverenciar o decano da nossa crônica regional, o gremista doente, o irredutível Paulo Santana.
Todos os dias, quando não está em tratamento, Santana incendeia a penúltima página do jornal Zero Hora com seus textos viscerais, desmedidos e absurdamente lúcidos, nos confrontando com aspectos inusitados de nossa realidade.
Outras vezes se põe a louvar o amor sexual com tanta entrega, que até dá para vê-lo acendendo com olhar distante a brasa irresistível do seu vício.

Admiro estas pessoas que sobrevivem aos pequenos desatinos e aos hábitos pouco recomendáveis que cultivam, porque suas almas são inquietas de tanto talento.
Mas por vias das dúvidas pretendo parar de fumar em 2008, até 31 de dezembro.

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